O século XX conheceu regimes políticos nefastos, com seus estados totalitários e o massacre do indivíduo em função do “deus-Estado” que prometia o “paraíso na terra”. Comunismo, fascismo e nazismo – em que pese as diferenças no corpo doutrinário de suas ideologias – produziram o terror em escala inimaginável com milhões de mortos. Todos eles se mostraram um perigo às liberdades individuais. Destes, apenas o comunismo ainda tem uma áurea beatificante ao redor de sua ideologia, mesmo tendo matado – pela fome, genocídio, fuzilamentos e outros meios – milhões de pessoas.
Diversas obras divergem sobre os números, mas uma das mais impressionantes nesses relatos é O Livro Negro do Comunismo de Stéphane Courtois, Nicolas Werth, Andrzej Paczkowski, Jean-louis Margolin, Karel Bartosek e Jean-louis Panne. Os números ultrapassam os 100 milhões. Os estudos se repetem com outros nomes como Richard Overy, Vladimir Tismaneanu, Robert Service, Robert Gellately, Alain Besançon e Timothy Snyder e tantos outros.
Em algumas dessas obras, as práticas desses regimes absurdos são inclusive comparadas, como fez Hannah Arendt – em Origens do Totalitarismo – ao estabelecer o paralelo entre Stalin e Hitler. O mesmo é feito por Overy em Os Ditadores e por Besançon em A Infelicidade do Século. São obras imprescindíveis a qualquer um que se interesse pela História com base nos fatos e não nas paixões ideológicas.
Snyder, por exemplo, ao escrever Terras de Sangue, mostra o quão similar eram as práticas dos campos de concentração nazista com os campos soviéticos, trazendo as cartas das testemunhas que nos fazem revisitar cenas expostas pelo Arquipélago Gulag do perseguido pelo regime Aleksandr Soljenítsin. Como um quebra-cabeça, essa literatura faz com que encaixemos peças e entendamos a lógica intrínseca desses estados do século XX que desprezavam a vida humana ao tempo em que se achavam o farol da humanidade para o progresso.
De um lado, um cientificismo biológico, como diz Overy, que reduziu homens às raças, enquadrando-os em coletivos, para uma falsa superioridade. Era o nazismo. Do outro, o cientificismo econômico da luta de classes dissolvendo a consciência individual nas causas e justificando todo tipo de crime em nome de uma utopia. Diferentes? Sim! Mas ambos com campos de concentração, perseguição ao inimigo político de todas as formas, o Estado construindo sua propaganda para substituir a verdade, a ineficiência burocrática e as guerras de narrativa para produzir o culto ao líder e uma versão de “realidade” que submetia o próprio povo à ignorância.
Se não tomarmos como lições o que ocorre na História, estaremos fadados a abrir portas para a repetição dos piores erros. O compositor brasileiro Raul Seixas, na canção Cambalache, enxerga muito bem isso em seus versos:
“(…) Que sempre houve ladrões, maquiavélicos e safados
Contentes e frustrados, valores, confusão
Mas que o século XX é uma praga de maldade e lixo
Já não há quem negue
Vivemos atolados na lameira
E no mesmo lodo todos manuseados (...)”.
O lodo produzido pelas ideologias seculares é onde ideólogos de plantão buscam nos manusear. Como dito: a busca pela verdade é substituída pela construção das narrativas que visam se sustentar apesar dos fatos e contra estes. Em outras palavras: a mentira repetida até virar verdade. No meio disso, quem ousa acordar, questionar ou dizer – como coloca G.K. Chesterton – que a “grama é verdade” é tido como um inimigo do progresso prometido por essas ideologias.
É o que fez Winston Churchill (sentença atribuída a ele, mas há dúvida sobre a autoria) cravar que os fascistas do futuro chamaria os outros de antifascistas. Não por acaso – no mundo atual – líderes como Vladimir Putin se apoia em pensadores fascistas como Aleksandr Dugin para recuperar a imagem de ícones do passado, como a reabilitação histórica de Stalin. Timothy Snyder mostra esse processo em Na Contramão da Liberdade, lançado recentemente pela Cia das Letras. Nada de novo no front.
Escancarar isso talvez tenha sido a razão do êxito da série televisiva Chernobyl, produzida pela HBO. Não há nela os campos de concentração tão conhecidos da era Lênin, Stalin etc. Não significa dizer que eles não existiam no período retratado pela série. Existiam, mas o contexto do mundo já era outro. Os crimes da União Soviética já eram conhecidos. Nikita Kruschev tentou até limpar o sistema jogando tudo no colo de Stalin, mesmo tendo sido ele um dos braços direitos de Holodomor, por exemplo. E, mesmo diante dos documentos históricos, ainda há quem jogue todo isso como mentiras ocidentais. Ou, aqueles que reconhecendo as tragédias provocadas pelo homem em tempos de paz, apenas diga que “deturparam Marx”.
Chernobyl traz um recorte da História da União Soviética ao mostrar o maior desastre nuclear do mundo. Engana-se quem acha que se trata de um equívoco, pois o Estado soviético tinha informações suficientes sobre os riscos do que fazia. Eles assumiram o perigo das consequências. Depois, diante dos fatos, importava muito mais a criação de uma narrativa que preservasse a “mãe-pátria” do que necessariamente a vida das pessoas. A preocupação não eram os seres humanos, mas o Estado e continuidade da revolução e seu sistema opressor.
Eis a essência desses regimes.
Chernobyl – para além da tragédia exposta – mostra muito bem isso, ao tratar do clima de medo e vigilância, ao mostrar os tentáculos da KGB, nas discussões travadas pelo Comitê etc. O que era o indivíduo naquele Estado: ludibriados, inocentes e até mesmo endurecidos pela verdade que não podiam professar, como quando se percebe a presença dos “mineiros” na série, que era o homem comum detentor da realidade inegável em seu senso comum contra as autoridades, que mentiam descaradamente do alto da arrogância de quem se observa superior por conta de uma ideologia.
A série da HBO é complexa e merece ser vista e revista por conta de seus detalhes. Cada capítulo possui diálogos estratégicos e muito bem-postos que mostram com incrível clareza o que os engenheiros-sociais – donos da visão irrestrita, como diria Thomas Sowell – que se creem agentes de um “mundo melhor”. O resultado disso: o desprezo pela vida humana, pois o homem só pode ser visto por “coletivos”. Quem não está a favor da ideologia, está contra a mãe-pátria e passa a ser uma ameaça a ser exterminada, seja fisicamente ou pelo assassinato de reputações.
Há tempos não vemos na televisão uma obra tão preciosa quanto Chernobyl.
Caso o leitor tenha assistido ou pense em assistir (o que indico), avalio como importante a ampliação do horizonte em relação ao tema. E aí, surgem duas obras importantíssimas, que foram publicadas recentemente no Brasil pela Companhia das Letras: Vozes de Chernobyl e O Homem Soviético. Ambos são da autora prêmio Nobel Svetlana Aleksiévitch. São obras dolorosas para quem tem apreço pela liberdade. Lições da História – com depoimento de pessoas que passaram pelos apuros – que confirmam o realismo chocante de Chernobyl.
Isso faz da série bem mais do que a História de um desastre nuclear. Mostra as consequências de tomarmos as vias que sacrificam a liberdade na tentativa fracassada de construir o paraíso terrestre. O resultado sempre foi um mar de sangue por diversos motivos. Afinal, como mostra Aleksiévitch, tão grave quanto a tragédia foram as ações do governo e gestores que nem sonhavam com a queda de regime no início dos anos 1990.
Estes – para manter vivo o totalitarismo construído desde a Revolução Russa de 1917 – jogaram fora a verdade, relativizaram os danos da tragédia sem precedentes, condenaram pessoas comum a uma fé metastática (como diz Eric Voegelin) em um regime cruel, colocaram muitos para morrer em nome do Estado, numa luta inglória em que foram expostos a níveis de radiação absurda, perdendo a vida em poucos dias.
Obviamente outros governos, democráticos por sinal, já utilizaram-se de procedimentos semelhantes em alguns de seus erros. As mentiras sempre se fizeram presentes os jogos de poder das autoridades constituídas nos países mais livres. Portanto, não se trata de achar que é uma exclusividade de regimes totalitários. O problema é que nesses regimes há apenas a mentira e as vozes discordantes - que podem servir de alerta - são brutalmente eliminadas de alguma forma. Por essas e outras razões, Aleksiévitch fez uma das mais brilhantes reportagens, em formato de Literatura, do nosso tempo. Se ela tivesse escrito apenas esse livro, já mereceria o Nobel.
Quem não se contentar apenas com uma obra pode ler também Serhii Plokhy, com a História de Uma Catástrofe Nuclear (tradução livre feita por mim, já que não encontrei a obra em português. Minha edição é em inglês). Serhii foi publicado no Brasil com outro livro que também vale a pena: O Último Império. Nesse, ele narra os últimos momentos da União Soviética. Uma excelente oportunidade para aprender sobre o ambiente em que se deu a tragédia.
Para quem acha que a série da HBO não produziu seus efeitos e que as ideologias andam distantes, ela foi muito discutida na Rússia, inclusive com “posicionamento” do atual chefe de Estado do país. Vladimir Putin se posicionou por meio de um veículo chapa-branca chamado Komsomolskaia Pravda. O jornal diz que a série faz propaganda estrangeira contra a indústria nuclear russa. O que mostra que ainda há os que insistem em negar a verdade.
Craig Mazin – criador da série – pontua muito bem ao afirmar que a missão assumida por ele correlaciona a tragédia com os dias de hoje ao falar que a verdade sempre irrompe. Chernobyl é sobre o passado, mas também é atual. Sem questionamentos às vozes oficiais – sejam elas de quais governos forem – damos uma carta branca aos condutores de destinos que se acreditam iluminados nas decisões que tomam por nós. Em democracias também há isso, por essa razão que – como diz um dos pais fundadores dos EUA – a liberdade tem como preço a eterna vigilância. Todavia, quando regimes são tomados por ideologias seculares, isso se torna bem pior e de consequências imprevisíveis.
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