Circula pela internet um vídeo em que o ex-candidato à presidência Ciro Gomes (PDT) tem uma desavença com a plateia e com a deputada federal Maria do Rosário (PT). A “treta” repercutiu nas redes sociais por mais uma vez o pedetista ter lembrando a condição do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT): condenado e preso.
Rosário não gostou e partiu para defender o petista; acusou Gomes de divisionismo. Todavia, a meu ver, esse não é ponto máximo do vídeo.
Na discussão entre Rosário e Gomes, temos alguns conceitos na prática. Primeiro: o chamado “centralismo democrático”, em que não há divergência no campo das ideias e nos méritos das pautas, mas sim na forma e condução destas, dentro do jogo político para a ocupação de poder. Sendo assim, se forma um “círculo” entre os concordantes e tudo que estiver fora dele é exposto como extremismo.
Tanto que Ciro Gomes declara seu apoio à unidade nas lutas, como nas manifestações de esquerda – por concordar com as pautas – mas não às táticas para além disso, nas disputas eleitorais, por achar que os progressistas passam a agir de forma errada e não conseguem ocupar espaços como antes, dentro de uma “hegemonia cultural”. Sim, o termo é usado por ele.
Essa foi a estratégia das tesouras, em que os que pareciam divergentes, na realidade, eram complementares. Isso fez com que o PSDB fosse visto – durante muito tempo – com um partido de direita, quando – com exceções – nunca abraçou o espectro liberal clássico ou o conservadorismo filosófico, que são posturas que de fato estariam em oposição às esquerdas. Em resumo: uma fraude, já que a democracia por excelência deveria ter um espectro político mais amplo com todos os matizes da esquerda à direita, passando pelo centro. Se criou uma bolha, que vai do centro-esquerda para a esquerda e tudo que tiver do lado de fora é “extremo”.
Logo, essas posturas (liberal e conservadora) – mesmo sendo defensoras da redução do Estado, da vida, da propriedade privada e da garantia de liberdades individuais – eram expostas como “fascistas”, quando o fascismo é justamente a defesa, como expõe Benito Mussolini em sua Doutrina, de tudo pelo Estado, para o Estado e com o Estado.
Nesse sentido, o vídeo de Gomes é uma aula sobre o “centralismo democrático”, quando sua fala é vista por completo. Mais ainda: ele cita o pensador marxista Antonio Gramsci e seu conceito de hegemonia cultural, que é uma ocupação de espaços para – por estratégia política – trabalhar pelos diversos meios difusos da cultura as agendas ideológicas, sem que necessariamente se perceba o interesse político por trás destas.
É a modificação da tal superestrutura da sociedade. Uma revolução silenciosa por onde os valores que a esquerda quer avançam sem que seja preciso dizer que é de esquerda. Ciro Gomes mostra toda sua concordância com Gramsci.
O pedetista trabalha uma autocrítica nos métodos da esquerda. “O que acontece no discurso dominante do Fernando Henrique (FHC) pra cá: tudo politicamente correto. É preciso garantir os direitos humanos, garantir a dignidade do ser humano (…) e isso se repete igualzinho a cada eleição”, frisa, ao reconhecer FHC dentro desse campo.
E segue: “Esses últimos 25 anos de governos sociais-democratas ou sociais-liberais, governos – aspas – auto-referidos de esquerda, progressistas, todos, ou alguém acha que Fernando Henrique não se refere como um progressista?”.Pois é…
Gomes diz que – “nesses governos auto-referidos de esquerda” – nenhuma mudança significativa ocorreu no Brasil. “E o que mudou, mudou para pior”, fazendo com que houvesse o despertar das ideias contrárias que antes estavam excluídas do debate público.
É nesse ponto que Gomes questiona o conceito de “unidade” dentro da esquerda. “Unidade para que cara pálida? Para fazer o mesmo? Conte comigo não. Agora vamos fazer o dia 30 juntos (manifestação)? Estamos juntos”, diz ao criticar a Reforma da Previdência e o governo de Jair Messias Bolsonaro (PSL).
Ao discutir o que chama de as “causas disso”, que é a queda da esquerda e a subida da direita, Gomes cita o filósofo Antonio Gramsci.
“Existe um intelectual italiano, que eu ando recorrendo muito a ele ultimamente, que teve uma influência importante na esquerda europeia (…) chamado Gramsci. O Gramsci põe em alto-relevo o conceito que ele chamava de hegemonia moral e intelectual (…). É a ideia, o exemplo e a militância. Isso pode transformar a minoria em maioria. E nós perdemos a hegemonia moral e intelectual no país. Nós, que estamos no campo progressista, do centro à esquerda (…). Nós, deste amplo campo, perdemos a hegemonia moral e intelectual. E aqui está a tarefa: reconstruir a hegemonia moral e intelectual”.
Em outras palavras: o militante 24 horas que atue com sua agenda político-ideológica sempre, em todos os momentos e nos lugares que ocupe.
Esse é o ponto. Ciro Gomes descreve exatamente o fenômeno que levou a esquerda a dominar o debate público por anos no país, ocupando jornais, universidades, o campo artístico etc: o foco na construção em uma hegemonia moral e intelectual.
Isso é Antonio Gramsci, um intelectual marxista e comunista, que subverteu o marxismo clássico em uma “práxis” de atuação para a transformação do corpo cultural. Esse fenômeno – associado a teoria crítica da Escola de Frankfurt, dentre outros pensadores – é o que se classifica de marxismo cultural, que não é o marxismo clássico em si, já que Karl Marx enxergava a estrutura como base para a superestrutura a ser mudada, e o pensamento de Gramsci foca na transformação da segunda, que são os valores presentes em uma sociedade.
É isso que é descrito – de certa forma – por uma imensa gama de pensadores conservadores ou liberais clássicos modernos ao criticar a esquerda, se opondo a uma hegemonia, por entender que democracia requer mais liberdade.
Todavia, quase sempre estes são ridicularizados por uma parcela da mídia que afirma que “nada disso existe”. Ora, não importa o nome que é dado ao fenômeno. Se não quiserem chamar de gramscismo, marxismo cultural ou qualquer outro rótulo, chamem do que quiser que não mudará o que a coisa é em si. Ciro Gomes apresenta isso no vídeo e detalha muito bem o que foi que a esquerda perdeu. Por essa razão, tudo que discorda dela é imediatamente posto como “fascismo”, “extremismo” e outros adjetivos que queiram colocar.
O que Gomes propõe é o retorno as bases gramscistas para a recuperação de uma hegemonia. Em outras palavras, excluir o que estiver fora do “centralismo democrático” do debate. Depois, ao tocar no nome de Lula, aí Gomes percebeu a “democracia tolerante” entre os seus…
Eis o nome de Antonio Gramsci no debate, ao vivo e a cores, servindo de referência para recompor a esquerda diante dos espaços perdidos. Mas, quem antes citava que a estratégia de domínio cultural da esquerda tinha esse pensador como base, assim como a Escola de Frankfurt e tantos outros, era porque via “comunista embaixo da cama”.
Ora, Gomes explica o passado na sua ânsia de reformular a esquerda para o futuro. Afinal, foi assim que eles criaram uma atmosfera em que as artes, as escolas, os meios de comunicação aderiram ao progressismo, em suas várias tonalidades, e qualquer sinal de “direitismo” passou a ser um perigo, coisa de analfabetos, o senso comum etc, etc, etc…
Ciro Gomes provou que o gramscismo existe! Mas antes dele, há nomes como Carlos Nelson Coutinho, uma referência no pensamento de esquerda, que ajudou a popularizar o pensamento de Antonio Gramsci lá atrás para que então a hegemonia fosse construída e assim se desse a ocupação de espaços.
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