Há coisas das quais não abro mão. Uma delas é a liberdade de expressão. Já defendi - e quem me acompanha aqui sabe bem disso - esse direito em relação a pessoas que pensam o oposto de mim. Nenhum conteúdo pode sofrer censura prévia. Que ele exista e - a partir do divulgado - passe pelo escrutínio e/ou em caso de cometimento de crimes previstos no código de leis passe a responder por isso.
Não creio que o segundo caso seja o da película. Pagará um preço sim, mas apenas pelas distorções que faz por conta da escolha ideológica do cineasta e ator Wagner Moura. O primeiro fato já vem sendo ridicularizado nas redes sociais, pois não é nem preciso assistir o filme: transforma Marighella em uma pessoa negra, quando isso não corresponde à realidade, como mostra a própria certidão de óbito do revolucionário.
Sou contra a campanhas de boicote. Fui contra no filme O Jardim das Aflições. Sou contra agora. Isso só faz promover ainda mais. Quem quiser que veja. Quem não quiser, não veja. Liberdade. Eu tenho até curiosidade, mas deixarei para assistir quando estiver em serviços de streaming.
Portanto, ainda não assisti o filme, mas acredito que não erro quando pontuo isso: pagará também o preço de ser alvo de polêmicas por não retratar o período com as complexidades inerentes a ele, transformando-o apenas na retórica do mocinho versus bandido.
Se de um lado, tinhamos o regime militar com seu período de exceção, que pode sim e deve ser criticado; do outro lado, antes mesmo da instalação do regime, tinhamos guerrilheiros comunistas que cometeram suas atrocidades não em nome da liberdade, mas de uma revolução aos moldes de Cuba e da extinta URSS.
Quem tiver estudado o comunismo a sério - e não faltam fontes, como Ascensão e Queda do Comunismo do historiador Archie Brown e a coletânea O Livro Negro do Comunismo, além de Cortina de Ferro de Anne Applebaum - verá uma ideologia sendo utilizada para a construção de um regime totalitário, com fuziliamentos, execuções sumárias, genocídio até por fome, campos de concentração, expurgos, dentre outras atrocidades.
No caso de Marighella, essa ideologia revolucionária se fazia tão presente que ele enxergava, por exemplo, o sufrágio universal para determinar os destinos de uma democracia como mero instrumento burguês. Para o revolucionário, a "transformação social" deveria ser por meios violentos contra os aparelhos considerados burgueses, como o aparato policial, os capitalistas etc. Por isso, há até em seus escritos a defesa da expropriação da propriedade privada.
Não há nenhum humanista em cartaz, como já quis colocar uma crítica publicada no Portal UOL.
Isto tudo se faz presente no principal escrito de Marighella: o Manual do Guerrilheiro Urbano, que pode ser encontrado fácil para e-book na internet. Nele, a linguagem é da violência. Afinal, é um homem que carregava em si os ideias de Mao Tse Tung e Joseph Stalin. Sabemos bem o que esses homens produziram na história. Foram tiranos, como foram tiranos Hitler e Benito Mussolini, ainda que haja diferenças no cerne ideológico do comunismo, fascismo e nazismo.
Como diz o pensador Alain Besançon, esses três regimes nefastos foram as infelicidades do século XX. Produziram bem mais que 120 milhões de mortos. É mais que s duas guerras mundiais juntas. Era com isso que Marighella flertava. Portanto, está muito longe de ser um herói contra um período de exceção, já que as crenças e ações de guerrilhas são anteriores ao regime militar brasileiro, como mostra o livro "1964: O Elo Perdido" de Mauro Kraenski e Vlademir Petrilák.
Há ainda outra obra muito importante sobre o momento: "O Golpe de 1964" de Itamar Flávio Silveira e Suelem Carvalho. Nesta, há uma lista das vítimas, que incluem 200 pessoas assassinadas pelas guerrilhas de comunistas.
(Por sinal, vale a leitura do livro de Besançon, chamado A Infelicidade do Século).
É claro que democracia é o que deve ser defendido sempre. Razão pela qual sou oposição a regimes militares. Mas, é também a mesma razão pela qual repudio comunismo, nazismo e fascismo. A democracia tem seus defeitos, mas é melhor ela que qualquer outro sistema, como já refletiu o ex-primeiro ministro britânico Winston Churchill.
Wagner Moura, ao querer fazer de Marighella um herói, enfrentará contra ele a História real indo de encontro ao seu revisionismo. É um suposto mártire que não se sustenta, o que não quer dizer que o regime militar não tenha cometido erros graves. Mas é que as coisas são o que são e não os nossos desejos ideológicos.
Moura diz que o filme é "maior que Bolsonaro", o atual presidente da República. Claro que é! Ele visa um revisionismo histórico pretensioso que é maior que qualquer governo. Acontece que não se sustentará nos fatos, pois já o falsifica logo de saída ao caracterizar fisicamente Marighella. Quem deseja retratar a realidade deve fazer isso buscando a maior verossimelhança possível. Não vemos isso sequer no cartaz do filme.
O problema não é o revisionismo em si. Pois, todo autor - seja em livros ou no cimena - ao encontrar novos documentos, fatos, ou pesquisas que reforcem sua tese pode fazer a revisão. A questão é o conteúdo dessa revisão corresponder ou não aos fatos.
Sobre as questões técnicas do filme, aí é outra História. Não assisti e não posso falar. Agora, não nego que como ator Wagner Moura é competente, haja vista seus mais recentes papéis no cimena, como o capitão Nascimento de Tropa de Elite.
Em todo caso, ao leitor que quiser aprender mais sobre o período, aconselho os livros, começando pelo Manual do Guerrilheiro Urbano de Marighella, os aqui já citados, Ditadura à Brasileira de Marco Antônio Villla, 1964; O Golpe de Flávio Tavares; 1964: O Golpe que derrubou um presidente de Jorge Ferreira e Ângela de Castro; Borboletas e Lobisomens de Hugo Studart; 1964 de Marcos Napolitano; Ideais Traídos de Sylvio Frota, dentre tantos outros.
Nessa pequena lista que aqui coloco, há críticos ferrenhos do regime militar, como é o caso de Flávio Tavares e Jorge Ferreira. Há até progressistas. Não indico apenas um "lado", mas sim leituras que até fazem contrapontos entre si. Assim, que o leitor forme sua própria visão e consciência sobre os fatos. Sem romantismos ideológicos de qualquer parte.
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