Desde que o diplomata Ernesto Henrique Fraga Araújo foi anunciado como futuro ministro das Relações Exteriores, que a imprensa tenta analisar como será o futuro do Brasil no cenário mundial com base no que Araújo pensa.
É natural esse processo e tem que existir mesmo.
Analisar, tentar se antecipar, desnudar o que pensa Ernesto Araújo faz parte. Mas, o futuro ministro também já foi alvo da "fake news". Está sendo atribuída a ele a declaração de que teria afirmado que a Revolução Francesa se inspirou no que se convencionou colocar como "marxismo cultural".
A suposta declaração virou até "card" nas redes sociais, na qual - com toda a pomposa arrogância - se indaga: como é possível Karl Marx inspirar a Revolução Francesa se cronologicamente o filósofo inspirador do comunismo nasceu posteriormente a ela?
Se Araújo tivesse realmente dito isso, seria uma bobagem. Acontece que ele não disse.
Ao se criticar as ideias de alguém faz parte da honestidade intelectual pontuar o que de fato foi dito e não o que gostariamos que tivesse sido dito. Ao adotar a segunda postura, se cria um recurso erístico vagabundo que é tão bem denunciado por Arthur Schopenhauer em A Arte de Vencer o Debate Sem Ter Razão.
Cria-se, desta forma, o espantalho. Como muito bem coloca o compositor e cantor Lobão, joga-se xadez com pombo. O pombo derruba as peças, defeca em todo o tabuleiro, estufa o peito e sai cantando vitória. Haja paciência!
Ernesto Araújo nunca colocou o assunto na perspectiva exposta na charge. O que ele expõe é o oposto disso, quando afirma que a Revolução Francesa é a mãe (analogia minha) do que veio depois, alimentando o racionalismo utópico de moldar o mundo conforme visões ideológicas, por meio de uma engenharia-social.
Isto fomentou o pragmatismo político mais violento, que foi alimentando pelas ideologias seculares que surgiram a partir daí.
Da Revolução Francesa ao marxismo cultural há - evidentemente - um grande percuso histórico na estrada pavimentada pelas ideologias e seus desdobramentos, passando pela Escola de Frankfurt, por Antonio Gramsci e outros. É esta história que Araújo analisa, por exemplo, em um de seus artigos em que versa sobre o Ocidente.
O interessante é que a sequência posta por Araújo é identificável nas obras dos próprios ideológos de esquerda, bastando a comparação das referências; fazendo o estudioso percuso em busca da gênesis destas ideologias. A leitura de O Estado e A Revolução do revolucionário e líder bolchevique Lênin é um exemplo.
O próprio Marx escreveu 18 Brumário, em que o autor analisa os acontecimentos na França com base na teoria da luta de classes, para concluir que o proletariado não deve assumir o aparato de poder do Estado, que - na visão marxista - atende as ideias dominantes. Ele, o proletariado, deve destruir tal aparato.
Marx afirma nessa obra que "a revolução de 1848 não soube fazer nada melhor que parodiar ora 1789, ora a tradição revolucionária de 1793-1795". Ele diz ainda: “A Revolução de Fevereiro foi um ataque de surpresa, apanhando desprevenida a velha sociedade, e o povo proclamou esse golpe inesperado como um feito de importância mundial que introduzia uma nova época".
O desespero de uma parcela significativa da esquerda é uma graça...
A Revolução Francesa foi inspiração da ação bolchevique na Rússia. O historiador Albert Mathiez destaca que Lênin se serviu da primeira como exemplo para a segunda. Mathiez diz que ambas possuem uma "ditadura de classe", querendo transpor fronteiras e mudar o mundo.
O revolucionário Trotsky também comenta a semelhança: “O seu método (da Revolução Francesa) era de guilhotinar a mais pequena divergência. O nosso é de ultrapassar teoricamente e politicamente as divergências. Eles cortavam cabeças, nós promoveremos a consciência da classe". Tal promoção não dispensava fuzilamentos, nunca é demais lembrar!
Um dos biógrafo de Stalin, Isaac Deutscher, firma também os pontos semelhantes, mesmo destacando as divergências que de fato existem.
Uma obra publicada no Brasil e que pode ajudar nessa compreensão é Bandeira Vermelha do professor de Oxford, David Priestland. Longe de ser um autor conservador, pois é até um admirador de Eric Hobsbawn, Priestland mostra essas raízes que remotam mais de dois séculos, firmando a Revolução Francesa como ponto de partida.
Por sinal, no debate entre Thomas Paine e Edmund Burke - dois pensadores do período da Revolução Francesa - vemos o embate entre um panfletário (Paine), que via a necessidade transformar o mundo em uma "folha em branco" na qual se pudesse aplicar a fórmula de um mundo melhor a partir de um racionalismo de viéis ideológico, e o fundador do pensamento conservador moderno (Burke), que criticava duramente Paine.
Quem tiver o interesse por esse debate - que acho fundamental para compreender a política moderna e sua visão de Estado que tudo pode - deve ler a obra O Grande Debate de Yuval Levin, publicada no Brasil pela editora Record.
É possível identificar com clareza as semelhanças entre o pensamento revolucionário de Paine e o que mais tarde veio a ser o pragimatismo do marxismo-leninismo, mesmo que as visões ideológicas sejam diferentes.
Então, a alusão que Araújo faz - do ponto de vista histórico - está corretíssima. Claro, com base nessa premissa, é possível discordar ou concordar da visão que ele tem a respeito do mundo de hoje e aí que se tenha o democrático debate. Mas querer desconstruir o que ele diz propagando uma mentira, me perdoem, mais nada mais é que vigarice intelectual pura.
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