Arma não é coisa de preto, nem de favelado: A raiz histórica do controle de armas no Brasil

09/05/2018 16:50 - Bene Barbosa
Por Redação
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Calma, calma. Podem guardar seus ancinhos, apagar as tochas e enrolar as cordas, não é hoje que vocês terão motivos para o meu linchamento! Confesso que me diverte, e muito, a simples ideia de você ser favorável ao desarmamento, ter vindo aqui única e exclusivamente pelo título “ofensivo” e, talvez, sair por aí repetindo exatamente uma ideia originalmente preconceituosa, elitista e racista: o controle de armas.

O assunto ao qual me dedico há mais de vinte anos de estudos nunca deixa de me reservar surpresas e novas descobertas. Da mesma forma que constatei o teor racial do controle de armas nos EUA e que expus no artigo “Como o racismo pautou as restrições de armas nos Estados Unidos”(1), chego à conclusão que o processo foi bastante semelhante no Brasil Colônia. Comecemos por esse exemplar trecho, reproduzido aqui ipsis litteris, publicado na Collecção Chronologica de Leis Extravagantes, Posteriores a Nova Compilação das Ordenações do Reino, publicadas em 1603 (2), em Portugal: "Para evitar os homicidios, ferimentos e brigas, a que dá occasião o trazem espada, ou espadim pessoa de baixa condição, ordeno que não possão trazer estas armas apprendizes de officios mechanico, lacaios, mochilas, marinheiros, barqueiros e fragateiros, negros e outras pessoas de igual ou inferior condição...".

Pois, pois, como dizem nossos irmãos de além-mar, como podemos observar, a ideia de que as armas eram causadoras de crimes quando nas mãos de “pessoas de baixa condição” não é nenhuma novidade aqui por essa terra onde as “águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem” (3), porém, com algum estudo mais aprofundado nas Ordenações Filipinas, cartas régias, bandos(4), avisos e ordens dos governadores,  é fácil chegar à conclusão que na realidade tudo que preocupava a Coroa era garantir a ordem estabelecida.

Foi exatamente a essa conclusão que chegaram os professores Izzabella Fátima Oliveira de Sales e  Arnaldo José Zangelmi, ambos da Universidade do Estado de Minas Gerais em seu artigo “Armas no termo de Mariana (1707-1736): Legislação e Direito Comum. Vejamos: “...nos detemos nos mecanismos que a coroa portuguesa procurava utilizar para controlar o porte de armas entre livres e escravos, com o intuito de evitar que eles se armassem, podendo colocar em risco a ordem estabelecida”. Interessante constatar que embora houvesse uma enorme preocupação que as armas chegassem às mãos dos cativos para evitar levantes e formação de Quilombos, isso também gerava conflito entre os senhores de escravos e a Coroa, pois os mesmos, muitas vezes armavam seus escravos para que os mesmos lhes proviessem segurança. Uma ação aparentemente paradoxal, mas que encontrava semelhança no próprio tratamento dado aos Rendeiros do Rei, ou seja, aqueles que arrendavam propriedades reais e por elas se tornavam responsáveis, esses eram obrigados a possuir e portar armas, afinal, para proteger as propriedades da realeza as armas eram vistas como instrumentos eficazes e necessários. Quando vemos, nos dias atuais, políticos defendendo o desarmamento sem abrir mão de seus seguranças armados, vemos que nada mudou.

O controle social, em especial dos mais pobres, negros escravos e alforriados, não era o único motivo de tais restrições, havia ainda um forte fator de status social. Conforme os autores do artigo em análise: “Entretanto, mais do que diminuir a circulação desses instrumentos entre os “facinorosos,” a legislação contribuía no sentido de tornar as armas um elemento de distinção social, pois, esse privilégio se tornava cada vez mais restrito aos indivíduos considerados vassalos fiéis da Coroa. Neste sentido, o direito contribuía para o processo de hierarquização da sociedade. O termo vassalo fiel está ligado aos setores da nobreza, grupo tradicionalmente conhecido como aquele dedicado à defesa do Reino, atividade esta que obviamente estaria relacionada a uma maior possibilidade de acesso às armas.” Como podemos ver, a ideia de armas apenas para os “amigos do Rei” são a nossa capitania hereditária e prova é que Brasília concentra o maior número de portes de armas emitidos no país.

Outro excelente artigo, que corrobora exatamente com essa tese de controle social como raiz da “nossa” mentalidade elitista na posse e porte de armas, é o “Minas Armadas - Escravos, armas e política de desarmamento na capitania mineira setecentista” (4) cuja autora é Liana  MARIA REIS, Professora do Departamento de História - PUC-MINAS: “O desenvolvimento das atividades mineradoras e de outros setores produtivos que também demandavam a força de trabalho escrava - como a agricultura, o comércio e a prestação de serviços - gerou um crescimento populacional dos centros urbanos e uma concentração de escravos nas Minas, levando a Metrópole a se preocupar com o controle sobre os cativos dispersos pelas várias regiões. Esse controle passava, inicialmente, por seu desarmamento.”

A conclusão é desconcertante aos que advogam pela eficácia do desarmamento para controle da violência e criminalidade, prestem atenção:  “Estavam postos a contradição e o conflito: no cotidiano da capitania das Minas os detentores de riqueza ou aqueles que detinham o poder de apavorar as populações, como foi o caso dos quilombolas e criminosos assaltantes das estradas, não abriram mão das armas e com armas em punho transformaram Minas num turbilhão de crimes. As gentes intratáveis tornaram a capitania em uma Minas Armada”. A lei, por mais restritiva que fosse, não teve o poder de desarmar os ricos e os criminosos.  E agora, 300 anos depois, tudo continua exatamente igual!

A sobretaxação atual (quase 75%) de armas e munições se iniciou na década de 90 no Brasil, pelas mãos do então presidente Fernando Henrique Cardoso. A justificativa é que se aumentando o valor, haveria uma menor demanda sobre o produto. E quem tal medida impactou? Exatamente os mais pobres, aqueles que, como antes, estavam mais expostos aos criminosos. Os ricos? Deram de ombros e na dificuldade de adquirir armamento, contrataram segurança privados armados. Prova disso é a explosão desse tipo de serviço no Brasil, em especial, após 2003 quando foi sancionado o malfadado Estatuto do Desarmamento.

Sei que experiências pessoais não comprovam absolutamente nada, mas servem, muitas vezes, como excelentes ilustrações para que se entenda a coisa toda.  Dito isso, ilustro: em 1991 adquiri minha primeira arma, comprada em uma loja no centro de São Paulo. A documentação exigida era o R.G., um comprovante de endereço, o atestado de antecedentes, o holerite e só. Ao meu lado um rapaz calçando chinelos de dedo e todo sujo de cimento e tinta comprava um revólver exatamente igual ao meu. Confesso que fiquei desconfortável... Como assim “aquele pedreiro” estava comprando uma arma? Imagina! Eu, primeiranista de Direito, de terninho e gravata tudo bem, mas ele? Ó que horror!

Sim, hoje eu me sinto profundamente envergonhado pelo meu preconceito. Graças a Deus e aos estudos sérios e não ideológicos sobre criminalidade e suas causas consegui afastar terminantemente tal pensamento. O que na época me parecia óbvio e aceitável hoje me grita abominável! Não, não que eu fosse rico, muito pelo contrário. Morava na periferia de São Paulo, em um “puxadinho” no fundo de outra casa, com a minha mãe e avô após a morte do meu pai. Nem cama eu tinha, dormia em um velho colchão de solteiro jogado do chão e rodeado de caixas de papelão que serviam de guarda-roupas. Mesmo assim eu pensei “esse cara vai comprar uma arma”. Imagino quantas pessoas pensaram exatamente o mesmo de mim, incluindo o governo e nossos queridos políticos e defensores do papo furado que arma não é para qualquer um.

Ao final das contas os desarmamentistas ecoam até os nossos dias, muitas vezes sem se dar conta disso, uma legislação secular, preconceituosa, elitista e racista de um tempo passado onde arma não era coisa nem de preto, nem de favelado. Pensando bem, de uma forma ou outra, com o discurso amenizado pelo politicamente correto, continua exatamente assim.

  1. http://www.cadaminuto.com.br/noticia/310388/2017/09/25/como-o-racismo-pautou-as-restricoes-de-armas-nos-estados-unidos
  2. http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/185579
  3. http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/livros_eletronicos/carta.pdf
  4. https://edittip.net/2016/04/11/bando/
  5. https://static1.squarespace.com/static/561937b1e4b0ae8c3b97a702/t/572b598b59827e91950d776d/1462458764136/09_Reis%2C+Liana+Maria.pdf

 

 

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