Uma Mãe de Santo alvejada por disparos de espingarda. Repúdio ao ensino do papel das religiões de matriz africana na história do Brasil. Protestos contra o uso de figuras de orixás em espaços públicos. Locais de culto de crenças afro-brasileiras invadidos, destruídos e depredados. Esses são alguns casos e situações que exemplificam a questão da intolerância religiosa no Brasil, país que, apesar de constitucionalmente laico, apresenta diversas faces de preconceito.

O último caso registrado na capital alagoana, por exemplo, ocorreu no dia 03 de março de 2017, durante uma cerimônia da Comunidade Tradicional de Matriz Africana Ilê Nife Omo Nije Ogba, localizada no conjunto Margarida Procópio, no bairro da Forene, parte alta da capital. Segundo a Mãe de Santo Iyálorixá Nailza Araújo, que coordena a casa, todos os participantes foram surpreendidos com uma “chuva de pedras” arremessadas sobre o telhado durante um culto.

“Crianças e jovens entraram em desespero. Eles foram acolhidos pelos adultos, à polícia foi acionada diversas vezes, tanto para o disk 100 quanto 190, mas não ouve retorno. A ação dos vândalos perdurou até mais da meia noite, quando nós, não aguentando tanta intolerância, saímos pelas ruas do conjunto sinalizando a importância da garantia de direitos”, explicou ela.

Nailza Araújo relatou ainda que é uma mulher negra que mantém as tradições herdadas dos seus antepassados africanos e vem sofrendo com a intolerância em seu cotidiano. “O terreiro tem em seu entorno diversas igrejas pentecostais, e muitos de seus fiéis residem próximo. Muitas vezes a falta de compreensão e respeito transforma-se em perseguição” disse.

Um dia após o crime, a Mãe de Santo foi efetuar o boletim de ocorrência acompanhada por um grupo de religiosos, que decidiu acionar a Secretaria da Mulher Cidadania e dos Direitos Humanos, a Organização dos Advogados do Brasil em Alagoas (OAB/AL) e os órgãos municipais e estaduais, todos competentes para buscar soluções.

O Presidente da Comissão de Defesa da Igualdade Social da OAB, Alberto Jorge, afirmou que dias antes do ocorrido houve uma incitação ao ódio por parte de pastores pentecostais da região, que afirmavam que o local era a “casa do demônio”, fato que pode ter impelido as pessoas a cometerem o delito.

“Devemos encontrar um caminho para que não haja mais conflitos por causa de religião. Cada um tem a sua, cada pode professar sua fé, todos podem se manifestar. Agora, o que não podemos permitir e aceitar é a violência. As diferenças devem ser respeitadas. Dias antes do crime, pastores discursavam sobre a casa de candomblé, afirmando que ali era uma casa do demônio, e supomos que isso tenha incentivado a população. As diferenças de crenças não devem ser gatilhos para o ódio” afirmou ele.

“Não existe respeito à dignidade de outra pessoa sem que se aprenda isto com auxílio educacional”

Este não foi o único caso de intolerância registrado na cidade, e este é um problema que assola todo o país. A intolerância no Brasil não é algo novo: ela começou com a chegada dos portugueses. O catolicismo não admitia nenhuma outra religião que não fosse a católica, e as crenças dos indígenas passaram a ser vistas como maléficas. Com a chegada dos negros escravizados a mesma atitude se repetiu, e, para escapar da perseguição dos senhores e do clero, os africanos tinham que esconder sua fé, e usavam as imagens dos santos católicos em suas cerimônias quando na verdade estavam cultuando seus orixás.

De acordo com a Superintendente da Secretaria de Direitos Humanos e Igualdade Social, Rita Mendonça, a população brasileira tem problemas em aceitar a origem afro-ameríndia, e só aceita bem a origem europeia. “Essa história mal resolvida e mal ensinada pelas instituições de ensino reverbera em uma postura que criminaliza e inferioriza quase tudo que recorre a estes dois povos. Precisamos urgentemente entender o diferente e aprender mais sobre ele” disse ela.

Também segundo a Superintendente, não existe respeito à dignidade e as escolhas do outro sem que aja educação adequada e eficiente para isto. “Precisamos nos conscientizar que o direito à liberdade religiosa é um direito humano assim como os demais: saúde, educação ou trabalho. E não existe verdadeiramente respeito à dignidade de outra pessoa sem que se aprenda isto com auxilio educacional, seja no ambiente formal ou familiar. O que nos falta é orientação sobre o outro” afirmou.

Rita disse ainda que poucos casos são devidamente registrados na Secretaria, e ressaltou a importância das denúncias. “É importante que as pessoas saibam que o Estado está à disposição e se coloca ao lado de qualquer instituição que se proponha a promover o direito humano das pessoas. A questão se resume à educação. Todos somos fruto de uma construção social” finalizou ela.

*Estagiária