Iria comentar esse assunto aqui antes. Mas, diante de outros compromissos como o fechamento da edição do CadaMinuto Press, só trago esse texto aqui hoje, apesar de já ter tocado nesse ponto nas minhas redes sociais. Trata-se de um vídeo de Lucia Helena Issa em que afirma que a Idade Média seria a Idade das Trevas e associa isso ao Cristianismo, inclusive acusando a Igreja Católica de ter “queimado livros”. Ela usa como fonte - ao menos nesse vídeo - o romance O Nome da Rosa do escritor e filósofo italiano Umberto Eco. 

Gosto de muitas obras de Eco, mas nessa há um quê de fantasia e de alusões históricas que não se sustentam, como mostra o historiador Jaques Le Goff, que está longe de ser um apologista do Cristianismo, mas sim um autor de linha marxista. Todavia, é preciso reconhecer: Le Goff é sim um grande medievalista, diferente de Umberto Eco. Porém, como vou mostrar no texto, até o próprio Eco, fora de seu romance, mas dentro de uma obra chamada Idade Média, desmente Lucia Helena Issa. 

A jornalista-escritora faz seu vídeo com o objetivo de desmascarar Olavo de Carvalho. E aí, não importa se o alvo é Olavo de Carvalho, José ou João. A questão é a informação posta e se ela se sustenta ou não. Não, não se sustenta. As bobagens postas pela jornalista são desmentidas até mesmo por Umberto Eco, isso para não falar de autores mais gabaritados como Le Goff, Cristopher Dawson, Regina Pernoud, Thomas Wood Jr dentre outros. Mas, vamos lá…

A jornalista afirma que Platão foi escondido pela Igreja Católica. Como é? E as obras de Santo Agostinho, minha senhora? E não são apenas ela. A Igreja preservou obras como as de Ovídio, que - em tese - teriam poesias de cunho temático que contrariam a Igreja. O que muito a religião faz é indicar o que não é bom para o “consumo” de um cristão. Mas, dentro da Igreja, o uso de Plantão embasou diversas discussões, bem como dos demais clássicos. Santo Tomás de Aquino tem toda uma obra analisando Aristóteles, como os estudos da Metafísica. Tudo isso na Idade Média, época em que tivemos também as maravilhosas reflexões de Hugo de São Vitor. 

Há sim uma contribuição islâmica para a filosofia ocidental e precisa ser reconhecida. Ela se dá ainda no século I e em alguns posteriores, como nomes como Avicena (que foi médico) e Averróis. Ninguém nega isso, ainda mais se for aprofundar nos estudos aristotélicos. Este último citado se apoiou muito em Aristóteles também, chegando a ser considerado um grande comentarista da obra do filósofo grego. 

No mais, temos os sufistas como Al-Ghazali. Depois, a filosofia islâmica entrou em decadência e se afastou do helenismo. Houve, aí sim, uma exclusão desse pensamento de dentro das “Madrassas”, que seriam o correspondente às universidades para a doutrinação islâmica, digamos assim. Quem pesquisar sobre elas, vai encontrar.

Paralelo a isso, temos o desenvolvimento de uma filosofia dentro da Idade Média que envolve a Escolástica e a união de conhecimentos clássicos com o Cristianismo e aqui temos nomes como Abelardo, Duns Scoto, Escoto Erígena, Santo Anselmo, Santo Tomás de Aquino, Santo Alberto Magno, Guilherme de Ockham, Roger Bacon e São Boaventura que são considerados os principais nomes da Filosofia medieval. A senhora desconsidera?

A jornalista ainda fala que a Igreja queimou livros clássicos na fogueira. A Igreja salvou clássicos, minha senhora. E aqui cito o estudo recente de Diane Moczar, tanto que o próprio Santo Tomás de Aquino comenta a Metafísica de Aristóteles em diversos volumes, repetindo. Agora, muitas obras de Aristóteles só foram encontradas após esse período. Quanto à difusão de cultura, minha senhora, não se pode comparar como era feito naquela época com a de hoje em dia. Um motivo: a invenção da imprensa, ora porra! Ou a senhora acha que as pessoas da Idade Média iam no shopping comprar livros?

E esta senhora se diz católica…

Umberto Eco

Mas, vamos além: citei aqui o livro Idade Média de Umberto Eco. Destaquei 10 trechos onde ele desmente a tese da “Idade das Trevas”:

1 - “Pesam sobre a Idade Média muitos estereótipos, e por isso será conveniente precisar, antes de mais, que a Idade Média não é o que o leitor comum pensa, o que muitos manuais escolares com postos à pressa fazem crer e o que o cinema e a televisão tem apresentado. A primeira coisa, portanto, deve dizer-se é o que a Idade Média não é. Em seguida, deve investigar-se o que é que a Idade Média nos deixou e ainda hoje é atual. Por fim, em que sentido ela foi radicalmente diferente do tempo em que vivemos”.

2- “Na Idade Média, a partir da época dos PADRES DA IGREJA (o grifo é meu), tudo é relido e traduzido”

3- “(…) em traduções latinas (feitas com base nos escritos desses padres/ a observação é minha e Umberto Eco deixa isso claro) serão conhecidos os autores da filosofia grega, usados para demonstrar sua convergiria com os princípios da teologia cristão e só a isso atira a MONUMENTAL (grifo meu) síntese filosófica de Tomás de Aquino (…)”

4- “Os séculos medievais NÃO SÃO (grifo meu) a Idade das Trevas dos autores anglófonos. Se com essa expressão se pretende aludir a séculos de decadência física e cultural agitados por terrores sem fim, fanatismo, intolerância, pestilências, fomes e carnificinas, esse modelo poderá ser aplicado, em parte, aos séculos que decorrem da queda do Império Romano até ao novo milênio, pelo menos, ao renascimento carolíngio”.

5- “Nestes séculos agigantam-se figuras de grande vigor intelectual”

6 - “Os irlandeses, convertidos ao CRISTIANISMO, fundam mosteiros onde são estudados os textos antigos (os clássicos que a professora diz que a Igreja queimou em fogueiras. Lembram? O parênteses é colocação minha)”.

7- “Monges (…) da Europa continental e inventam ao mesmo tempo uma originalíssima forma de arte da alta Idade Média, representada pelas miniaturas do Livro de Kells e outros manuscritos análogos”.

8- “Além de identificar a beleza com a proporção, a Idade Média identificava-a com a luz e a cor, e esta cor era sempre elementar: uma sinfonia de vermelho, azul, ouro, prata, branco e verde, sem esbatidos nem claros-escuros, em que o esplendor é gerado pelo acordo geral em vez de se fazer determinar por uma luz que envolve as coisas por fora ou de fazer escorrer a cor para fora dos limites da figura. Nas miniaturas medievais, a luz parece irradiar dos objetos”

9 - “E basta ler o Cântico das Criaturas, de São Francisco de Assis, para descobrir uma Idade Média plena de alegria hílare e sincera perante um mundo iluminado pelo irmão Sol”.
10- “A Idade Média NÃO REPUDIOU a ciência da Antiguidade”

O que faz um “historiador” quando a fonte que ele mesmo usa o desmente? Todas essas afirmações podem ser encontradas na obra de Umberto Eco, que não é um primor ao retratar a Idade Média, mas que afugenta a possibilidade remota de tratar como Idade das Trevas e associar isso ao Cristianismo.

Rebatendo

Outro ponto me chamou atenção: após as suas publicações, Lucia Helena Issa foi rebatida por uma série de pessoas com base em diversas fontes, inclusive o próprio Olavo de Carvalho. E se achou “atacada e ameaçada”. Ora, ela pode lançar um video prometendo desmascarar alguém, mas quando esse alguém responde, inclusive oferecendo um curso, é um “ataque”, uma “ameaça”. Não demorou para ela classificar todos que estavam contrariando ela como uma espécie de “ISIS Cristão”, como se fossem terroristas. Todavia, não especificou quem a ameaçava. Jogou todo mundo no mesmo balaio. 

É o “vitimismo” de quem não encara o debate de ideias. Se ela, e por ser escritora deveria saber disso!, levanta uma tese deve entender que vai encontrar quem se oponha a essa tese e rebata nos detalhes. A própria filosofia se desenvolveu assim, com o confronto de ideias. Ou não?

O "vitimismo" é algo dantesco. Pessoas rebatem informações "históricas" de alguém e aquele que foi "rebatido" se diz ameaçado de morte por uma espécie de "ISIS cristão". Se alguém lhe ameaça de morte, denuncie essa pessoa publicamente e à Polícia. Afinal, este não pode sair impune. Ninguém tem o direito de sair por aí ameaçando os outros. Por mais que eu discorde de alguém, eu serei um dos primeiros a defender a integridade física dessa pessoa, bem como a liberdade dela pensar o que pensa. 

Agora, caso não concorde  com uma tese ou veja que há erros monumentais no que é dito, é meu direito rebater e citar fontes primárias nas quais me apoio. E rebater e expor fontes que contradizem não é ameaça a seu ninguém, mas o exercício natural em um DEBATE. Já a ameaça é CRIME. E um crime contra quem quer que seja precisa ser denunciado para as medidas cabíveis serem adotadas. Se ela (a ameaça) existe, una os fatos concretos que a tipifique e tome as previdências adequadas ao invés de choramingar distribuindo culpas genéricas no intuito de descredenciar todo mundo que discorde de você. O nome dessa generalização é FALÁCIA. Continua sendo FALÁCIA quando disfarçada de um discurso manso.

Por fim, Issa fala das Primeiras Cruzadas como um ato extremamente cruel do Papa Urbano. Vamos lá: O cenário é século VII: comunidades cristãs em regiões como Egito, Norte da África, Espanha, Síria e Palestina foram atacadas por árabes. Jerusalém foi ocupada em 638. Muitos cristãos foram escravizados. Hakim - o califa - mandou destruir a basílica do Santo Sepulcro e promoveu uma perseguição a cristãos e judeus. Em 1071, a região de Jerusalém foi invadida por seldjúcidas. Mais prisões, torturas, sequestros e mortes.

O “cruel” para Urbano reagiu apenas em 1095, com o inicio das primeiras Cruzadas. Elas se estenderam até 1291. Quem quiser mais detalhes pode estudar o Concílio de Clermont. Um dos objetivos centrais era libertar os cristãos sob o poder dos seljúcidas, o caminho para a Terra Santa (que se encontrava bloqueado pelos turcos) e combater a expansão que visava conquistar TODA A EUROPA. O papa ainda esperava socorrer maronitas que estavam sendo perseguidos e isolados na região que hoje é o Líbano. Isso desde a invasão turca.

As Cruzadas proclamadas, portanto, foram convocadas como reação. Conquistaram uma faixa de terra pequena e com duração pequena. Claro que há cristãos que cometeram erros em nome da Igreja e temos papas ruins, como foi o terrível Bórgia. Todavia, é preciso honestidade intelectual para discutir ponto a ponto. Mentir em voz doce e em nome da paz, continua sendo mentir. 
 

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