O panfleto clássico Discurso Sobre a Servidão Voluntária de Étienne De La Boétie sempre me causou inúmeras reflexões desde que o li pela primeira vez ainda no primeiro ano da faculdade de jornalismo. La Boétie consegue apresentar a temática da liberdade com metáforas riquíssimas, dando a pequena obra - que se lê em uma tarde de sossego - magistrais analogias a partir de um sentimentalismo, mas com muito embasamento teórico e fatos. Todavia, do outro lado, incomoda-me a posição revolucionária. Mas, La Boétie se mostra um apaixonado. 

Por sinal, uma das melhores análises que se fez sobre a obra La Boétie é de Eric Voegelin,  no volume VI de  História das Ideias Políticas (É Realizações). Voegelin analisa os diversos discursos que se opõem ao totalitarismo e ao autoritarismo. La Boétie, por óbvio, é um desses e, apesar de pouco lido hoje em dia, teve grande influência por sua obra incendiária, digamos assim. Discurso Sobre a Servidão Voluntária mexe com corações e almas. 

O mais impressionante é que o panfleto é escrito por um autor de 18 anos de idade. Logo, toda a passionalidade se faz presente. No entanto, é impossível negar que em alguns momentos este autor não tenha razão e não nos apresente algumas reflexões para o mundo atual. Ele chama atenção para o quanto uma cultura deturpada pode deixar os aspectos da servidão voluntária encarnada na alma por sentirmos o processo como natural. “(...) é o povo que se sujeita, que se corta a garganta, que, podendo escolher entre ser subjugado ou ser livre, abandona a liberdade e toma o jugo, que consente no mal, ou antes, o persegue”, diz em um dos trechos do livreto. 

É quase a mesma lição do conservador Edmund Burke quando diz que para que o mal triunfe basta o silêncio dos bons. Aos 18 anos, La Boétie coloca que não nascemos com a posse da liberdade, apesar de enxergá-la como direito natural, e justamente por isso há aí um processo de conquistas na busca por defendê-la das tiranias. Temo os processos revolucionários porque são capazes de transformar esses discursos em gasolina para as fogueiras dos tiranos mais cruéis que os tiranos que tentam depor. A Revolução Russa é um exemplo disso. 

Como diz Manon Roland: “Ó liberdade, quantos crimes cometem-se em teu nome”. A frase foi proferida diante das consequências da Revolução Francesa, que - por sinal - é muito bem analisada por Burke em Reflexões Sobre a Revolução na França. Tais apontamentos burkeanos nos permitem observar a diferença entre o processo americano e o francês. Nos EUA, houve uma consolidação de valores que permitiram uma liberdade e não um “cortem cabeças” impulsionado pelo jacobinismo de plantão. O brasileiro Marcel Novaes mostra muito bem isso em O Grande Experimento (Editora Record). 

Porém, feita essa introdução, ao reler Étienne de La Boétie no fim de semana passado, chamou-me atenção o momento exato em que fala de Xonfonte (o historiador grego do período antes de Cristo). Ele, o grego, fala da busca do Estado pelo controle de armas como forma de, gradativamente, impor uma tirania. Em tempos modernos isso é muito falado, sobretudo na forma como o tirano Adolf Hitler buscou tirar as armas dos judeus antes de perseguí-los. Há uma excelente obra destinada ao assunto escrita por Stephen P. Halbrook, que é Gun Control in the third Reich. 

Na obra, Halbrook fala que antes de assumir o poder - em 1933 - já havia sido determinado que os arquivos de registros de armas ficassem em total segurança para que não caíssem nas mãos dos chamados “elementos radicais” da sociedade. Porém, o governo e tal controle caíram justamente nas mãos dos nazistas e essas informações foram usadas para desarmar os inimigos políticos do Reich, em especial os judeus. Em 1938, os judeus perderam o direito de cidadania e os bens, mas, antes disso, os meios para defender a própria liberdade. É só estudar sobre episódios como A Noite dos Cristais. 

Como mostra La Boétie ao analisar períodos mais longínquos da história, consultando Xenofonte, tal estratégia não é novidade. E eis, no fundo no fundo, porque governos se interessam tanto em desarmar a população. O alvo nunca é o bandido, mas a liberdade do cidadão de bem. É um dos mecanismos para conduzí-lo à servidão voluntária por medo. Assim, prometendo a segurança se rouba a liberdade. 

“Xonofonte diz que os maus reis empregaram estrangeiros na guerra, subornando-os, pois não ousam confiar armas ao próprio povo, a quem fizeram mal”, salienta La Boétie. Ele conclui que o governo nunca pensa que seu poder estar seguro quando homens do povo possuem a consciência clara do valor da liberdade e possuem os meios de reagir caso sejam massacrados à servidão por governos tiranos que ampliam o poder coercitivo do Estado ameaçando o direito à vida e à propriedade. E aí, são vários os momentos históricos - apoiados em diversos historiadores - que são citados no discurso do autor. 

Isto é defender uma revolução? Não! Isto é saber que o cidadão que segue as leis quer o direito ao porte de arma por pensar em sua defesa, a defesa de sua família e de sua propriedade. É o que o difere do bandido, que quer a arma para praticar o mal e não se submete a nenhuma lei. O homem honesto se submete às leis. Porém, tendo senso moral e consciência livre sabe que nem toda lei é justa e pode praticar a desobediência civil, inclusive se insurgir contra uma tirania que busque lhe roubar a vida, a família e a propriedade. 

La Boétie é para ser lido com calma. Porém, é para ser lido. 
 

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