“A modernidade líquida em que vivemos traz consigo uma misteriosa fragilidade de laços humanos – um amor líquido”. O trecho é do livro “Amor Líquido”, do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, que radiografa os relacionamentos da atualidade e coloca em debate o uso da tecnologia como um dos canais para estabelecer esses vínculos. Na era da informação, o uso de aplicativos e redes sociais como premissa para se relacionar e conhecer pessoas é unanimidade entre pessoas de várias faixas etárias. Se por um lado estudiosos alertam para a tendência desses laços se tornarem cada vez mais frágeis, não é difícil encontrar quem conheceu o amor da sua vida por meio da tela de um celular ou de um computador.
A paquera virtual é algo relativamente novo no Brasil, tem em média 20 anos e começou puxada pelo sucesso das salas de bate papo na internet. Na era da internet das coisas, os aplicativos vêm com a proposta de cada vez mais facilitar a vida das pessoas e é por meio deles que milhões de pessoas pelo mundo buscam encontrar um parceiro. Falar em aplicativo de paquera é relacionar a ter um crush, que na gíria inglesa significa alguém que você tem uma “queda”, o famoso “estar a fim”.
O Brasil é atualmente o país com mais usuários de aplicativos na América Latina, segundo dados divulgados por dois gigantes do mercado de aplicativos de paquera no mundo ao CadaMinuto. Segundo o Happn são mais de 4,6 milhões de brasileiros com perfis ativos no aplicativo. Em Maceió já passam dos 50 mil o número de usuários. Em um levantamento feito pelo Happn no ano passado, a praia de Pajuçara lidera a lista das que mais atrai os solteiros. Um levantamento de 2015 mostrou que as brasileiras são as mulheres mais proativas da América Latina em relação ao volume de Charms enviados (tipo a cutucada no Facebook). No mundo, esse posto é das indianas.
O Happn utiliza a geolocalização em tempo real para ajudar o usuário a descobrir pessoas cujos caminhos cruzaram com o seu na vida real. Toda vez que a pessoa cruzar com outro usuário Happn, o perfil desse usuário aparecerá em seu app.
Os maceioenses também são a maioria dos usuários do Tinder em Alagoas. A empresa não divulgou a quantidade de pessoas que possuem perfil no aplicativo, mas elegeu as cidades com maior número de usuários. Marechal Deodoro aparece na segunda colocação com relação a quantidade de perfis, seguido das cidades de Maragogi e Barra de São Miguel. Atualmente São Paulo é a segunda cidade no mundo com o maior número de usuários do aplicativo, atrás apenas de Los Angeles. Para se ter ideia da força dos aplicativos de paquera pelo mundo, diariamente o Tinder informou que registra 1,4 bilhões de avaliações de perfis e cerca de 26 milhões de matches (combinações).
O estrondoso sucesso dos aplicativos de paquera é motivo de estudos tanto no campo da comunicação quanto na psicologia. O publicitário e especialista em marketing estratégico, Raphael Araújo, avalia que houve uma evolução no modo como as pessoas se relacionam por meio da internet, mas que é preciso observar que boa parte desse contato virtual tem tornado as relações rasas.
“O surgimento desses aplicativos de relacionamentos, baseados nas primeiras plataformas disponíveis na internet com essa mesma finalidade, facilitaram a busca por uma relação amorosa, ligadas a uma suposta afinidade entre os envolvidos. No entanto, a autopromoção e a falta de profundidade nas conversas aparecem como algumas das principais consequências negativas do mundo virtual. Parece que precisamos praticar o desapego e a intensidade que se tornou algo descartável e com prazo e as interações, ainda que muitas se tornem cada vez mais perenes”, pontuou.
Para o psicoterapeuta Laerte Leite os aplicativos, redes sociais e sites de relacionamentos são importantes ferramentas de interação e que podem possibilitar a aproximação e a troca de experiência entre as pessoas, porém ele alerta que as pessoas precisam ficar atentas e evitar que o uso excessivo dessas mídias promova um isolamento social.
“Estamos cada dia mais só, estamos perdendo o contato com a realidade, não estando perto das pessoas. Vivemos duas realidades, uma na rede social e outra real. Hoje adolescentes e jovens entre 15 e 26 anos são em sua grande maioria usuários de redes sociais e muitos deles criaram vínculos de dependência com elas. Temos que utilizar os aplicativos para aproximar as pessoas e não para isolar”, defendeu.
“Uma mensagem brilha na tela em busca de outra. Seus dedos estão sempre ocupados: você pressiona as teclas, digitando novos números para responder às chamadas ou compondo suas próprias mensagens. Você permanece conectado — mesmo estando em constante movimento, e ainda que os remetentes ou destinatários invisíveis das mensagens recebidas e enviadas também estejam em movimento, cada qual seguindo suas próprias trajetórias. [...] Estando com o seu celular, você nunca está fora ou longe” – Amor Líquido Bauman.
E é o sociólogo polonês que em um de seus trabalhos problematiza o amor, o uso de tecnologias e a tendência a promover relações pouco duradouras. Em Amor Líquido, Bauman fala das conexões que as pessoas promovem pelo uso de tecnologias e alerta para a tendência de criar uma espécie de bolha social, como alerta o psicoterapeuta Laerte Leite. “Hoje atendo muitas pessoas que por não saberem se portar quando estão fora das redes sociais ou aplicativos desenvolvem quadros de depressão e outros transtornos. As pessoas precisam saber dosar entre o real e o virtual, usar a internet pra aproximar as pessoas, trocar conhecimento. É uma questão muito séria para a humanidade” avaliou.
Mesmo em meio à superficialidade que ronda as relações virtuais, há histórias de amor bem sucedidas e que deixam exemplos de que é possível encontrar a felicidade em locais pouco prováveis. O CadaMinuto conta a história de três casais que se conheceram em diferentes situações, mas todas com um mesmo ingrediente: a internet como coadjuvante.
O milagre de Fátima
Desde que a internet se popularizou mundo afora um dos principais recursos utilizados como forma de interagir com pessoas que estavam distantes eram as mensagens eletrônicas. Foi na década de 90 que as salas de bate papo se tornaram as queridinhas dos brasileiros. A velocidade da internet nem de longe chegava aos pés da atingida atualmente nas conexões. Era época da internet discada, tempo em que ‘entrar’ no World Wide Web tinha horário marcado para acontecer.
Em 1999 a recém formada em jornalismo Flávia Batista tinha como planos fazer mestrado em Portugal e decidiu entrar em uma sala de bate papo do UOL para ‘sentir’ o clima entre os nativos e talvez conhecer pessoas que pudessem ajudá-la a ter ideia de como seria a vida no Velho Continente. Em uma dessas salas, Flávia iniciou uma conversa com “Léo”, codinome usado por Nuno, torcedor fanático do Sporting Clube de Lisboa, cujo mascote é um leão. No decorrer da conversa, Flávia e Nuno falaram mais de si, a alagoana contou do fim do seu namoro e de como vinha tentando se recuperar do término da relação. O que talvez ela não esperasse é que a conversa com o amigo português se tornaria algo diário. Em Maceió ela aproveitava o tempo disponível no estágio e ele aproveitava para se conectar na Universidade de Santarém para assim conversarem.
“Passamos a não nos contentar só com o chat e começamos a nos telefonar diariamente. Nessa época as ligações internacionais eram bem caras. Não tinha WhatsApp, ou outra fonte de ligação barata, mas passávamos horas no telefone como se fosse uma ligação local. Nessa época o namoro dele acabou e daí a gente meio que começou a "namorar" virtualmente”, conta.
Quando o namoro começou a vingar pelas fibras óticas que os conectavam, já não era mais o desejo de fazer um mestrado que movia Flávia a cruzar o Atlântico e sim a vontade de conhecer Nuno. “Passamos nove meses nesse namoro virtual e em março do ano 2000 eu embarquei com malas e uma coragem que desconhecia ter. Meus pais me apoiaram muito, apesar do medo louco de tudo ser uma furada, mas eu era adulta, tinha 25 anos e estava decidida”, disse.
O receio de Flávia começou a ter fim quando chegou ao aeroporto de Lisboa e viu que o “Léo” da sala de bate papo existia, se chamava Nuno e a aguardava com um buquê de rosas vermelhas no saguão de desembarque. Porém o fato que ela considera um sinal de que a união iria dar certo aconteceu numa ida ao Santuário de Fátima. “Eu tinha curiosidade de conhecer porque minha mãe é devota de Nossa Senhora, daí comecei a rezar na basílica e pedi a ela para me dar uma luz para eu saber se estava no caminho certo, se o Nuno era mesmo o melhor para a minha vida. Então no exato momento que terminei o pensamento, ele me pediu em casamento. Foi nosso milagre de Fátima”, relembra.
Flávia e Nuno se casaram em novembro de 2000, moraram por algum tempo na cidade de Alcorrochel, em 2002 eles vieram morar em Maceió após a morte da mãe de Nuno. Seis anos depois do primeiro encontro nasceu o primeiro filho do casal, João Bernardo, que hoje tem 11 anos.
“Passamos por algumas dificuldades no início, porque minha sogra não entendia como eu tinha deixado meu país, como meus pais tinham permitido, mas enfrentamos tudo juntos e estamos até hoje”, completou.
Quando tem que ser, acontece de verdade
Depois das salas de bate papo foi a vez do Brasil virar fã de carteirinha das redes sociais. Foi pelos idos de 2004 que surgiram as principais redes sociais: Facebook e o saudoso Orkut e nele várias pessoas tiveram a experiência de escrever depoimentos, avaliar, compartilhar e ver fotos de amigos, promover debates em fóruns e comunidades.
Rodrigo Alves tinha 22 anos quando foi em uma loja em Maceió e avistou aquela que se tornaria sua noiva. A primeira iniciativa foi procurar saber o nome daquela moça que o atendeu. O crachá ajudou a memorizar o nome que seria buscado no Orkut. Solicitação de amizade e depoimento enviados, Rodrigo começava ali a empreitada para conquistar Rafaela Conrado.
“Quando cheguei à loja achei ela linda, então olhei para o crachá, vi o nome dela e quando cheguei em casa fui procurar no Orkut. Aí pedi email, MSN, dai começamos a conversar. Foram meses de conversas até que começamos a namorar em 2010 mesmo e estamos juntos até hoje”, contou.
Apesar de nunca te ser relacionado com ninguém que tivesse conhecido pela internet, Rodrigo diz que rede social até então para ele era apenas um passatempo, mas naquele dia sentiu algo diferente e decidiu localizar a Rafaela, nas redes sociais.
“Nunca acreditei que desse certo conhecer ou se relacionar com pessoas que você conhece pela internet. Mas com ela foi diferente. Fomos gostando um do outro, começamos o namoro, nossas famílias apoiaram também”, disse.
Sete anos depois o casamento está marcado para 2018, cercado de planos e amor. “Quando o amor é pra acontecer mesmo não tem escapatória. Ele vai aparecer seja num aplicativo, num acidente de trânsito ou em qualquer situação inusitada. Quando é para ser não adianta fugir ou correr, tem que se entregar”, completou.
“Foi Deus”
Os canais de relacionamento de pessoas cresceram de forma exponencial, com capacidade para atender a vários públicos. Foi assim no Brasil por volta de 2008 quando começaram a aparecer os primeiros sites de relacionamentos voltados para o público evangélico. Hoje eles possuem aplicativos e outras tantas ferramentas para ajudar quem busca um par dentro das suas expectativas. Foi o que fez Denise Caetano em 2014.
Evangélica, ela conta que procurou buscar por pessoas que tivessem a mesma perspectiva religiosa que a dela. Perfil cadastrado, Denise acessou poucas vezes o espaço, porém em junho deste mesmo ano uma mensagem mudaria completamente sua vida. Um rapaz mexicano, também evangélico, se mostrou interessado em conhecer melhor a alagoana. “Recebi a mensagem dele que hoje é meu esposo, dizendo que queria me conhecer, que tinha gostado de mim, então olhei o perfil dele, era um perfil que me agradava, ele também é evangélico, tem qualidades que gosto muito, como estar envolvido nas ações da igreja, aí respondi no mesmo dia e preferi não ficar conversando com ele pelo site. Passei meu e-mail e ficamos um mês nos comunicando por e-mail, contando a rotina, trocamos fotos”, lembra.
A conversa evoluiu e o Skype foi a alternativa usada por eles para melhorar a comunicação. Durante um ano Denise e Enoc conversavam via chamada de vídeo com muita frequência, mas problemas pessoais fizeram com que a jovem alagoana deixasse de lado o contato virtual com o mexicano.
“Passei uns três meses sem falar com ele, aí no fim de 2015 achei que o relacionamento não iria evoluir. Em outubro voltamos a nos falar pelo WhatsApp e em dezembro ele mandou uma mensagem dizendo que em março de 2016 estava vindo para o Brasil me conhecer. Ele veio a Maceió, passou 10 dias aqui, conheceu minha família, meu trabalho, minha rotina, aí firmamos um relacionamento mesmo”, disse.
A partir daí, Denise decidiu cruzar a América para conhecer a família de Enoc. Foi numa praça no México que aconteceu o pedido de casamento e em fevereiro do ano seguinte eles decidiram dizer sim a vida de casados.
“Costumo dizer que foi de Deus esse relacionamento, foi tudo muito certo e hoje estamos juntos e agora dia 10 de junho vamos fazer três meses de casados. Estou muito feliz, contente e realizada, era uma coisa que eu queria, de me relacionar com alguém assim”, comemorou Denise.
Coincidência ou não, nem Denise nem Enoc acreditavam no sucesso de uma relação mantida por meio da internet. Porém ambos tiveram exemplos bem próximos de que o amor podia suportar as distâncias e se tornar real. Foram as experiências amorosas dos irmãos que os encorajaram a apostar no poder da internet para unir as pessoas.
“Na verdade eu só dei mais ênfase em conhecê-lo porque em 2014 minha irmã se casou com um marinheiro do Rio de Janeiro e eles se conheceram por um site de relacionamento. Ela passou num mestrado em química na UFRJ e tinha esse perfil na internet e eles se conheceram por esse site. Isso pra mim fez com que se quebrasse um paradigma, eu nunca acreditei que um relacionamento pela internet daria certo”, revelou.
“A irmã dele conheceu o atual marido pela internet, ele é do Panamá e eles começaram a se relacionar a dez anos e há três está casada. Meu marido foi contra o relacionamento, achava um absurdo conhecer alguém pela internet, mas depois que ela casou, foi aconselhado pela irmã a fazer um perfil na internet e hoje quebrou esse paradigma. Às vezes julgamos algo sem conhecer e é necessário que conheça”, continuou.
Apesar da distância que separam Maceió do México, Denise disse que vem se adaptando bem a nova realidade, superando a saudade da família e dos amigos e curtindo a vida de casada.
“Hoje acredito que quando tem que dar certo, dá e quando Deus está na direção de tudo não tem distância, pode ser do outro lado do mundo que acontece. Não é muito fácil estar longe da família e dos amigos, eu tinha um emprego estável, trabalhava numa área que gostava, mas acredito que aqui também vai acontecer. A falta da família sempre tem, mas no dia a dia vai superando, o carinho e dele tem sido fantástico para essa adaptação”, finalizou.