Japão: desarmamento, opressão, dominação e a incapacidade de defesa de uma nação

01/11/2016 20:53 - Bene Barbosa
Por Bene Barbosa
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Não raramente o Japão é utilizado, por aqueles que professam da crença de que armas trazem violência e insegurança, como exemplo de uma nação pacífica, onde os homicídios são raros e isso se deve ao desarmamento. Nada raro porém é o desconhecimento total de quando, como e o porquê o Japão foi desarmado e, mais importante ainda, quais foram, as consequências nefastas disso.

Tanegashima é uma ilha do sul do Japão, situada no arquipélago Ōsumi sendo a segunda maior do arquipélago. Foi nesta ilha que desembarcaram os primeiros portugueses com suas missões Jesuítas em 1543. Logo depois vieram os franciscanos e dominicanos. Junto aos Europeus vieram as armas de fogo que causaram enorme impacto nos moradores da ilha, que em pouquíssimo tempo puderam constatar sua utilidade para caça e defesa quando comparadas aos arcos e flechas e espadas. A ilha era e é conhecida pela sua produção de ferro e pelos mestres artesãos/ferreiros. Dentro desse contexto, não demorou muito que esses ferreiros passassem a produzir seu próprio armamento, com grande qualidade e quantidades relativamente altas para padrões de produção da época. O Japão entrava oficialmente na Era da Pólvora e Tanegashima se tornava sinônimo de arma de fogo e assim são designadas até hoje.

O Japão feudal era politicamente caótico. No início do século XVI, os conflitos internos tinham saído do controle ameaçando a ordem social e o poder dos senhores feudais. Esse cenário só seria revertido pela sucessão de três guerreiros notáveis: Oda Nodunaga, Toyotomi Hideyoshi e Tokugawa Ieysu. Como explica John Keegan em seu livro “Uma História da Guerra”:

“A excelência do comando não foi a única explicação para a restauração do poder central. Os três generais eram também expoentes de uma nova arma (as armas de fogo)”.

Da mesma forma que souberam utilizar as armas de fogo para impor um governo central, entenderam que o controle absoluto das mesmas era essencial para a manutenção do Status Quo. Hideyoshi então, determina que todos aqueles que não eram militares deveriam entregar suas armas de fogo e espadas na promessa da construção de uma gigantesca imagem de Buda. Promessa que nunca se concretizou. Ao que parece as promessas dos desarmamentistas do passado chegaram incólumes aos desarmamentistas modernos. Ao final do século XVII as armas de fogo e canhões já eram raríssimas, pouquíssimos japoneses ainda tinham o conhecimento no fabrico de armas e canhões.

Keegan aponta três motivadores para a imposição do desarmamento no arquipélago japonês. Primeiramente havia uma verdadeira ojeriza ao que era estrangeiro e as armas de fogo era um grande símbolo disso, associadas ainda mesmo que ilogicamente ao cristianismo que era visto como uma ameaça à ordem estabelecida pelos governantes. Junto com as armas, todos os religiosos estrangeiros foram banidos. O segundo, e para mim o de maior peso, foi a “instabilidade social” que a posse de armas trazia uma vez que qualquer camponês, sem qualquer tradição nas artes do combate, munido de uma arma de fogo poderia abater sem muitas dificuldades um fidalgo ou um samurai altamente treinado. O terceiro ponto é que simplesmente era possível! Não haviam ameaças externas, as ameaças internas (após o desarmamento das classes inferiores) podiam ser facilmente esmagadas pela força das espadas samurais e, culturalmente, a pólvora era irreconciliável com o ethos do guerreiro japonês. Na prática, para as classes dominantes, as armas não fariam qualquer falta.

O Japão se tornava a nação que implantara o desarmamento com o maior e mais profundo grau de sucesso possível. A Era da Pólvora simplesmente foi varrida daquele país, mas isso não significou mais civilidade ou paz. Muito pelo contrário. Ao desarmar sua população, camponeses e não fidalgos, os governantes levaram a opressão ao patamar poucas vezes alcançado. Como define John Keegan, “ao assegurar o monopólio das espadas aos guerreiros, os Tokugawa estavam garantindo o lugar dos samurais no pináculo da sociedade japonesa”.

A própria ideia rousseauniana de que em sociedades primitivas e/ou antigas as guerras eram insípidas e pouco sangrentas e que a arma de fogo trouxe mais letalidade e, portanto, mais mortes, não se sustenta. Lawrence H. Keely em seu livro “A Guerra Antes da Civilização – o mito do bom selvagem – destrói essa falsa afirmação trazendo alguns dados interessantes, entre eles de que “em uma comparação recente de taxas de baixas das guerras antigas e modernas, foi calculado que em média setenta por cento dos homens engajados nas batalhas antigas foram mortos ou feridos, ao passo que somente sessenta por cento dos combatentes nas batalhas modernas mais sangrentas se tornaram baixas”.

O historiador Stephan Turnbull corrobora com essa visão ao resumir os efeitos do desarmamento:

“As ordens do ditador Hideyoshi foram executadas com exatidão. A crescente mobilidade social dos camponeses foi subitamente revertida. Os Ikki, os monges-guerreiros, se tornaram figuras do passado... Hideyoshi forçou os camponeses a abandonarem suas armas. Ieyasu [o regente seguinte] então começou a privá-los de seu respeito próprio. Se um camponês ofendesse um samurai, ele poderia ser executado imediatamente pela espada do samurai. [The Samurai: A Military History (New York: Macmillan, 1977).

Se nos mais de 200 anos o desarmamento trouxe enormes vantagens aos governantes autoritários e tão somente a eles, isso se reverteu quando o Comodoro americano Mathew Perry e sua frota de “navios negros” abriram fogo com seus 22 canhões na baia de Edo. Quando desembarcaram houve um misto de medo e reverência por parte de uma população que em dois séculos vira poucos estrangeiros e nenhuma arma de fogo. Não se tratava apenas de exibicionismo, tratava-se de um ultimato à abertura dos portos japoneses aos americanos e às outras nações ocidentais. Ao governo japonês, que abandonara as armas de fogo e canhões, não houve alternativa senão aceitar os “acordos” comerciais.

Outros estudiosos, entre eles David Kopel, Paul Gallant e Joanne Eisen do Independence Institute, apontam ainda, com base no livro, “Giving up the Gun: Japan’s Reversion to the Sword 1543-1879” de Noel Perrin, que as leis de desarmamento japonesas forjaram a cultura de submissão às autoridades, que por sua vez facilitaram o domínio por uma ditadura militar imperialista na década de 30 que levou a nação a uma desastrosa guerra mundial.

No final das contas, como afirmam os estudiosos acima, “o único país que criou uma sociedade verdadeiramente sem armas criou uma sociedade de dura opressão de classes, em que os homens fortes da classe mais alta poderiam matar integrantes das classes mais baixa com total impunidade. Quando um governo racista, imperialista e militarista tomou o poder, não havia nenhum meio de resistência eficiente. A sociedade sem armas do Japão se tornou exatamente o oposto da utopia igualitária da canção Imagine de John Lennon”.

Livros recomendados:

John Keegan – Uma História da Guerra - http://livraria.mvb.org.br/uma-historia-da-guerra

Lawrence H. Keely - A Guerra antes da civilização - http://livraria.mvb.org.br/a-guerra-antes-da-civilizacao-o-mito-do-bom-selvagem

Noel Perrin - Giving up the Gun: Japan’s Reversion to the Sword 1543-1879 - https://www.amazon.com/Giving-Up-Gun-Reversion-1543-1879/dp/0879237732

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