Lembranças de uma infância feliz e politicamente incorreta

13/10/2016 10:57 - Bene Barbosa
Por Bene Barbosa
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Em sua autobiografia, G. K. Chesterton afirma que, para decepção de muitos, teve uma infância plenamente feliz. Referia-se o pensador à “moda” de outros pensadores em cantar suas infelicidades e traumas infantis. Tal qual Chesterton, também tive uma infância feliz. Não que não houvessem problemas e dramas familiares que somente já adulto pude entender a gravidade, mas nada disso foi capaz de apagar a alegria presente.

Bons tempos onde o politicamente correto ainda não existia ou, no máximo, começada ainda à florescer no Ocidente, passei incólume por ele e pude “fumar” cigarrinhos de chocolate da PAN, comer muitos Danoninhos que valiam por um bifinho, deixei bilhete de “não esqueça minha Caloi” sem que ninguém se preocupasse se vinha com capacete e joelheira, fiz guerra de mamona com o estilingue feito pelo meu avô, fustiguei os “inimigos” com grãos de milho lançados por armamento feito de bob e bexiga, soltei bombinhas que se comprava em qualquer boteco, fiz fogueira, queimei coisas com a lente de aumento de uma luta, brinquei na lama, tomei chuva e água diretamente da torneira.

Na escola sofri zoações (a horrenda e chata palavra bullying não existia, nem micro-agressões e palavras não machucavam...). A solução veio do meu pai: desce o braço e manda me chamar. Funcionou... E por falar em pai, lembrei da vez que minha mãe, toda preocupada, perguntou para ele se não achava um problema eu só pedir armas de brinquedo de presente. O velho Bene, com a sutiliza de alguém que nasceu em 1919 e cresceu na roça, sentenciou: “vou me preocupar o dia que ele pedir uma boneca!”.

Cresci assistindo filmes de bang-bang onde bandido era bandido e mocinho era mocinho que, aliás, sempre vencia. De lá a paixão pelas armas do Velho Oeste americano, traduzidas em brinquedos que as imitavam. A Estrela com seus revólveres de espoleta fez parte mais do que ativa nos tiroteios, duelos, guerras, prisões de bandidos e monstros mortos durante as quentes tardes de verão no litoral de São Paulo onde morava. Para ser exato, na Rua Pereque, nº 200. A casa ainda está lá e dá para ver no Google Maps. Não havia asfalto e o esgoto era a céu aberto. Nem ligava, gostava. 

Eram por essas ruas que desfilava com minha espingarda de chumbinho que ganhei aos 8 anos.  No quintal da velha casa ainda deve haver alguns quilos de chumbinho disparados da minha Rossi e do INA .32 da minha mãe. Sim, treinávamos tiro no quintal, ninguém se importava, era absolutamente normal. Revólver esse que foi responsável por uma bronca, presenciada por mim, de um policial rodoviário ao meu pai que havia esquecido a arma em cima do teto do carro depois de abastecer. Imaginem o que aconteceria hoje...

Lembro bem de dois carros que meu pai teve e da lembrança de que andei naquele buraco atrás do banco traseiro do Fusca e no porta-malas do Corcel I. Cinto? Nem nas calças! Sobrevivi. Como sobrevivi às terríveis balas Soft, embora confesse que por pelo menos duas vezes a maledetta teve que ser arrancada da minha garganta pela minha mãe.  

Busquei cerveja no armazém para meu pai muitas vezes e o “pagamento” era gastar o troco naqueles maravilhosos doces de vitrine. Maria-mole, suspiro colorido e aquelas bananadas que vinham em um potinho de casquinha comestível. Em tempos atuais acho que prenderiam até o gato que desfilava em cima do balcão de lá.

Cresci, a infância ficou para trás e é isso que deve acontecer. Hoje, homem feito, tento ao menos preservar algumas coisas dessas em meus três filhos, dois deles ainda crianças, para que também tenham em suas memórias aromas, gostos, lembranças e em seus joelhos e cotovelos, cicatrizes. Não é fácil com a ditadura do politicamente correto que infestou, tal qual um destrutivo vírus, a nossa sociedade

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