Li, durante o final de semana, um texto de o Estadão (AQUI) em que se mostrava a forma como o atual presidente Michel Temer (PMDB), em sua obra Elementos de Direito Constitucional, travava as questões das penas relativas a presidentes que passam pelo processo do impeachment. O Estadão mostrou - em seu texto - que Temer defendia a separação das penas. Há pontos, entretanto, que são necessários esclarecer nesta análise. O primeiro: em momento algum, ao tratar do assunto, o presidente, na época em que escreveu a obra, afirma que pode ser aplicada uma penalidade e a outra não; ou que se pode separar as votações. Por sinal, o autor trata a inabilitação como pena principal.
Ele (Temer) apenas esclarece o que ocorre em caso de renúncia com o processo de impeachment já deflagrado.
Em minha edição da obra, que é a 24ª edição; 3ª tiragem, o assunto é tratado na página 171. Temer trata dos crimes de responsabilidade a partir da página 169, quando transcorre sobre o rito do impeachment. Michel Temer se apoia no artigo 85 da Constituição Federal, que estabelece que esses crimes “serão definidos por lei especial, que estabelecerá as normas e processo de julgamento”.
Lá, ainda indaga o seguinte: “Essa lei, definindo os crimes, poderá elencar outros além dos arrolados I a VII do referido artigo (o 85)?”. É o próprio autor que responde: “A resposta é afirmativa, uma vez que aquele elenco é exemplificativo, e desde que defina, como crimes, atos que atentem contra a Constituição Federal”.
Na sequência, ele trata das normas de processos e julgamento, ressaltando o papel da Câmara de Deputados e do Senado Federal. A forma como transcorre o texto demonstra o que vimos acontecer em relação à ex-presidente Dilma Rousseff (PT). Óbvio: quando Temer escreveu isto, talvez nem imaginasse que seria vice-presidente de uma ex-presidente que foi cassada por conta de crime de responsabilidade.
Mas, vamos ao que interessa: as penas podem ser aplicadas de forma separada ou não? O artigo 52 da Constituição Federal é muito objetivo. Como já comentei em um texto publicado neste blog, além da perda de mandato, há também a inabilitação por oito anos. Não há espaço para a separação entre estas na aplicação das penalidades, que é o que o Senado Federal resolveu fazer em uma ação orquestrada, que contou com o apoio do presidente do Congresso Nacional, Renan Calheiros (PMDB).
O que o Estadão talvez não tenha entendido é que assim como eu entendo, Michel Temer - em sua obra - entende também. Ele não fala das separações da pena para aplicar uma sem necessariamente aplicar a outra. Basta, para entender isto, não ler apenas um parágrafo da obra, mas o capítulo inteiro em que trata da questão. Pois, quando faz a análise, o atual presidente ressalta o caso do presidente que renuncia ao mandato, em meio ao processo de impeachment já deflagrado, como ocorreu - por exemplo - com o senador Fernando Collor de Mello (PTC), que perdeu seus direitos políticos pelo prazo de oito anos. Collor só fez o reingresso à vida pública após cumprir a sentença.
É o que coloca Temer no livro: “Se o presidente da República renunciar ao seu cargo quando estiver em curso processo de responsabilização política, deverá ele prosseguir ou perde o seu objeto, devendo ser arquivado?”. A indagação que o autor levanta se refere a isto: diante da renúncia, o impeachment perde seu objeto? Ou seja: o objeto não se trata da perda do cargo, uma vez que se renunciou, mas da penalidade em relação ao crime, que é a inabilitação, por oito anos, para o exercício da função pública como descrito no artigo 52.
Então, é a esta questão que Michel Temer responde: “O art. 52, parágrafo único, fica duas penas: a) perda do cargo; e b) inabilitação, por oito anos, para o exercício da função pública”.
Na sequência, ele escreve: “A inabilitação para o exercício de função pública não decorre da perda do cargo, como à primeira leitura pode parecer”. Ou seja: mesmo diante da renúncia, mesmo sem o cargo, o infrator segue respondendo o processo em função da inabilitação ser pena principal e não acessória. Dúvida? Eis o texto: “Decorre da própria responsabilização. Não é pena acessória. É, ao lado da perda do cargo, pena principal. O objetivo foi impedir o prosseguimento no exercício das funções (perda do cargo) e o impedimento do exercício - já agora não das funções da quem cago que foi afastado, mas de qualquer função pública por um prazo determinado”.
Entenderam? Por isto que o processo segue, mesmo diante da renúncia (na visão de Temer); é isto que se mostra quando se fala de “separação de penas”. E não que uma pode ser aplicada e a outra não. Se ainda há dúvidas, a obra do atual presidente vai adiante: “Essa (a inabilitação) (é) a consequência para quem descumpriu deveres constitucionalmente fixados”.
Este trecho creio ser ainda mais esclarecedor: “Assim, porque responsabilizado, o Presidente não só perde o cargo como deve afastar-se da vida publica, durante oito anos, para “corrigir-se” e só então poder a ela retornar”.
“A renúncia, quando já iniciado o processo de responsabilização política, tornaria inócuo o dispositivo constitucional se fosse obstáculo ao prosseguimento da ação”, mas - na visão do presidente - não é. Olha o exemplo dado por ele: “Basta supor a hipótese de um chefe de Executivo que, próximo do final de seu mandato, pressentisse a inevitabilidade da condenação. Renunciaria e, meses depois, poderia voltar a exercer função pública (ministro de Estado, Secretario de Estado etc), participando dos negócios políticos dos quais o processo de responsabilização visava afastá-lo”.
É por isto que Temer concluiu que “havendo renúncia, o processo de responsabilização deve prosseguir para condenar ou absolver, afastando, ou não, sua participação da vida pública pelo prazo de oito anos”. Se é assim com quem renuncia, é assim com quem não renuncia. Se condenado, inabilitado. Se absolvido, habilitado. Ora, Dilma Rousseff foi condenada a perda do mandato pelo Congresso Nacional. Logo, inabilitada estaria se não fosse a manobra que rasgou a Constituição Federal.
No mais, Temer reflete sobre a possibilidade de revisão de mérito da decisão do Congresso no Judiciário. Ele afirma - em sua obra - que “não pode reexaminar o mérito da questão”.
Na minha visão, era assim que o Estadão deveria tratar o assunto para não haver margem de dúvidas sobre o que pensou o presidente. Mas, da forma como foi posta, o pensamento de Michel Temer - publicada pela Malheiros Editores - parece dizer o que não disse, ou tratar de caso semelhante ao de Dilma, quando a análise aprofundada é feita em relação aos casos de renúncia em meio ao processo deflagrado.
Portanto, ao dizer que “Em livro, o presidente Michel Temer já havia se posicionado sobre a questão, defendendo que a perda do cargo e a inabilitação são penas distintas”, o Estadão erra ao não colocar logo em seguida que Temer defende que a inabilitação seja aplicada por ser pena principal. A distinção se dá para se entender o que ocorre em casos de renúncia.
E ao mostrar um dos trechos da obra - esse aqui: "O art. 52, parágrafo único, fixa duas penas: a)perda do cargo; e b) inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública. A inabilitação para o exercício de função pública não decorre de perda do cargo, como à primeira leitura pode parecer. Decorre da própria responsabilização. Não é pena acessória", escreveu Temer em "Elementos de Dirito Constitucional" - deveria contextualizá-lo e não usar de forma solta. Pelo menos, o jornal lembra que é de 1982.
O pior é afirmar isto aqui: “Na interpretação jurídica de Temer, que é advogado, a inabilitação não é um efeito da perda do cargo de presidente, mas uma pena separada. Dessa forma, seria possível que fossem realizadas duas votações separadas, embora o presidente não diga isso explicitamente em seu livro”. Ao fazer isto, o Estadão faz uma interpretação extremamente singular do que não se encontra no livro. Pois ao ler o texto completo de Temer se entende justamente o contrário.
Agora, o Estadão acerta ao dizer que “O partido de Michel Temer foi o principal responsável pela manutenção dos direitos de Dilma Rousseff. Após a votação que afastou definitivamente a petista, 10 de 19 senadores do PMDB votaram contra a inabilitação e outros dois se abstiveram, posicionamento que favorece a presidente”. O dedo de Renan Calheiros neste processo é bem visível.
Se duvidam, leiam a obra!
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