As pessoas são livres para consumirem a arte que bem entenderem. Quando critico uma obra de arte aqui, ou quando elogio, eu faço única e exclusivamente pela minha perspectiva. O mesmo se dá quando indico um livro. É uma tentativa de passar adiante algo que achei bom. Obviamente, alguém pode não achar, rebater, refutar, enfim...e ainda bem que isto existe. Ainda bem que não somos iguais.
Abri mão, há muito tempo, da TV aberta. Só ligo com raras exceções. Às vezes nem é nada contra o mérito do que ali se apresenta, mas contra o senso estético das coisas postas e como elas se apresentam por lá.
Tudo tem um viés da apelação, do choque - por mais gratuito que seja - e do mito do progressismo. Isto me cansa. Prefiro, em épocas de pós-modernidade, quando ligo a televisão, selecionar, para o tempo de lazer, aquilo que realmente gosto e não ficar ao sabor do aleatório. Enfim, assisto algumas séries, futebol e programas jornalísticos. Morre aí.
Nada mais chato - para mim - em uma obra de arte do que aquilo que soa gratuito e/ou que simplesmente obedece a uma agenda politicamente correta de seu tempo apostando as fichas em um apelo popular ou na reação calculada das pessoas.
Ah, os planejadores. Não se enganem. Eles calculam até o teu ódio e o que vão lucrar com a tua baba escorrendo pela tela do computador. Calculam, os marqueteiros, as reações dos que vão amar e dos que vão odiar. Bem ao estilo do "falem bem ou mal de mim, mas falem". "Provoquem a polêmica, ainda que esta seja vazia, pois vai render matérias, matérias e mais matérias ou - na época de todo mundo pensando em voz altas - tretas nas redes sociais", posso ouví-los pensar.
Como as pessoas são livres para gostar disto, eu sou igualmente livre para preferi uma reclusão básica em relação a estes temas das "polêmicas da semana" que não me agradam em nada. Vejo como coisa vazia e fim! Enquanto alguns discutem aí sobre o que se fez ou deixou de fazer em uma novela, eu tenho me debruçado sobre o maravilhoso romance Invernos na Ilha de Rodrigo Duarte Garcia. A obra me foi indicada pelo genial Alexandre Costa.
Como é bom não saber da nova polêmica da novela X.
O senso estético de Rodrigo Duarte Garcia e a forma como trabalha a construção das personagens lembra-me o título do excelente ensaio de Gregory Wolfe, que é titulado A Beleza Salvará o Mundo. É deste tipo de beleza que falo. Não se trata de nada físico, mas de enxergar o profundo do ser humano nos pequenos gestos, nos diálogos mais triviais. É o que adormece nas entrelinhas - no caso do romance de Garcia - dos diálogos entre o personagem principal Florian e Rousseau. É o que se faz presente no incomodo visceral de Florian diante da médica que mexe com seus instintos e lhe desperta o essencialmente humano em meio a um contexto espiritual que a Ilha (local do romance) lhe propõe.
Um senso estético que há muito alguns romancistas ou roteiristas esqueceram - seja em Hollywood, seja no Brasil - por preferirem o caminho mais fácil. Nunca veremos, eu aposto, uma adaptação do livro de Garcia arrebatar multidões para o cinema. Pouca gente entenderá o belo impulso sexual dos cabelos arrepiados na nuca da médica que coloca Florian em brasa. Chegamos ao tempo em que a médica deveria, já nas primeiras páginas, estar nua. Quem sabe dando para Florian e Rousseau ao mesmo tempo. Não se trata de ter algo contra a nudez. Eu tenho absolutamente nada de moralista. Corro dessa gente moralista. São, em grande maioria, uns frustrados. Trata-se apenas de desprezar tudo o que envolve o ser humano em função de uma agenda específica ao invés da complexidade extrema do que somos e de como somos o que somos. Dentro desta complexidade, o impulso instintivo e os sentimentos mais rudes, bem como os mais belos, são parte e não o todo. O todo é inalcançável ainda que tangenciável. Destacá-los, em meio a uma narrativa, requer um contexto que não os vulgarize ou torne apenas mais uma polêmica vazia que reduza toda a arte a esta.
Porém, em tempos onde tudo é vendável por meio dos gritos, que assim seja, será melhor que ser arte.
Como é bom - dentro deste turbilhão de coisas e de vozes altas - preparar uma xícara de café no silêncio da noite e viajar pelas páginas de Invernos na Ilha saboreando toda a trajetória que ali se faz presente, em primeira pessoa, mergulhando em dilemas, dores, prazeres, dúvidas e sentimentos rudes e bons de um personagem rico, construído por um romancista que não se vendeu ao mais fácil. É possível notar o cuidado de Garcia para que nada se faça presente de forma gratuita; e nem mesmo as descrições de ambientes, o que nos leva a lembrar da maneira como Machado de Assis nos conduzia pela minuciosidade. Quem não leu Machado, que leia...ainda é tempo! Quem não leu clássicos, que leia...ainda é tempo. Eles não envelhecem. Estão acima disto, pois ao retratarem o homem de seu tempo, enxergam nele - por meio de todos os detalhes que o compõem - o universal e não um "bolo de carne material" ditado pelo espírito da época.
É quase irresistível não fazer spoiler do livro de Garcia, mas não farei. Será uma forma de incentivar aos leitores que conheçam a obra. Ela não vai render polêmica nas redes sociais, não vai chocar os corações que buscam polêmicas em tudo, ela não será uma novela das 22 horas com mais uma discussão fast-food. O livro de Garcia será o que há muito deixamos de ver: uma obra que nos remete ao silêncio, que nos leva a investigar a nós mesmos, que mostram - em muitos momentos - personagens como se espelhos fossem. Ela nos levará a um inverno em uma ilha (no meu caso, na minha ilha tinha uma varanda e uma xícara de café) na qual a arte ganha força e, apesar dos pesares e dos barulhos, fica claro que a beleza salvará o mundo. É um livro do qual saímos se não melhor, mais inteligentes. É por isto que me preocupo demais com o senso estético e ético de uma obra de arte.