Em 1946, o escritor Adouls Huxley escreveu um prefácio à reedição de Admirável Mundo Novo que é maravilhoso. Simplesmente fantástico. Repito: estamos falando de algo que foi escrito em 1946. Confesso: por conta deste prefácio acabei adquirindo três edições de Admirável Mundo Novo. 

A primeira comprei quando ainda estava na faculdade de Letras. Não tinha este prefácio. A segunda, um tempo depois, já com o prefácio de 1946. A terceira foi em inglês. Nunca li o livro em inglês, mas queria conferir se a tradução do prefácio feita pela Biblioteca Azul era fiel. Sim, era. Creio que Admirável Mundo Novo seja uma das mais importantes distopias já escritas, sobretudo pelo fato que Huxley consegue dissecar os males tanto de uma visão de direita ao extremo, quanto de uma esquerda ao extremo, mostrando os males da “razão articulada” que sempre acredita ter a fórmula do mundo melhor. 

Mostra ainda o perigo que os homens enfrentam quando olham para o seu tempo e não conseguem diferenciar o que precisa ser conservado do que precisa ser mudado. 

Esta cegueira será a forma que sempre leva à revoluções intolerantes em que os que não - como diz Huxley - “amam o caminho da servidão” serão perseguidos pelos que se auto-intitulam “livres”. Os  perseguidos são os que, de pronto!, já recebem o título de contrarrevolucionários, independente de qualquer coisa que pensem, mas simplesmente por serem obstáculo ao futuro que não veio e provavelmente não virá, mas que é vendido como o tempo de “felicidade suprema” e/ou de “paraíso na terra”.

Mas, vamos ao prefácio de Huxley...

Mesmo tendo escrito uma obra genial, o autor demonstra uma humildade que serve de lição logo no início, ao reconhecer, anos depois do escritor ter ganho fama, alguns de seus defeitos: “Se uma pessoa procedeu mal, arrependa-se, faça as reparações que puder e trate de comportar-se melhor na próxima vez. Não se deve, de modo nenhum, pôr-se a remoer sua más ações. Espojar-se na lama não é a melhor maneira de ficar limpo”.

O conselho de Huxley pode ser dado àqueles que adoram se apegar a uma ideia e fazer dela o “sentido de vida”. Assim, mesmo quando os fatos contraiam flagrantemente a ideologia fruto de uma “razão articulada”, há pessoas que não conseguem aceitar os fatos, simplesmente porque viveram a vida toda apoiadas em uma ideologia. 

Elas preferem subvertê-los por acreditarem terem tido a visão reveladora do mundo futuro. Assim, seguem a espojar-se na lama, incapazes de ouvir o mundo ao redor gritando que quem com porcos vive acabará bem semelhante aos porcos. Falo dos porcos de George Orwell em A Revolução dos Bichos, por exemplo. Lá, ou se é porco, ou se é servo. E os porcos venderam um futuro melhor onde todos seriam iguais, mas não precisou muito para que o futuro os tornassem “mais iguais que os outros”.

Huxley ainda frisa - de forma genial - que o Panteão para os professores “deste mundo paradisíaco” será sempre erguido entre as ruínas de cidades destruídas. Metáfora melhor não poderia haver. Os entendedores entenderão. Quantas vezes na história a revolução amada pelos intelectuais de plantão não deixaram rastros de sangue e estátuas de pé que foram derrubadas, não pelos pensadores que se viam deturpados, mas sim pelo povo que não mais se via como servo. 

É por esta razão que, no prefácio que aqui cito, Adouls Huxley vai fundo e diz que “a revolução verdadeiramente revolucionária deverá ser realizada, não no mundo exterior, com marcas de ruínas, mas sim na alma e na carne dos seres humanos”. É neste ponto que, lá de 1946, o romancista e ensaísta manda seu recado para o futuro. Em uma passagem, em que cita Marques de Sade, escreve o seguinte: “Sade considerava-se apóstolo da revolução verdadeiramente revolucionaria, que iria atém da mera política e economia - a revolução dos indivíduos, homens, mulheres e crianças, cujos CORPOS (grifo meu) se tornariam, de então em diante, a propriedade sexual comum, e cujas MENTES (grifo meu) deveriam ser expurgadas de todas as decências naturais, de todas as inibisse laboriosamente adquiridas da civilização tradicional”.

Qualquer semelhança com uma realidade que não mais diferencia quem é vítima de quem é algoz, quem está certo de quem está errado, quem tem argumentos de quem só usa adjetivos para desqualificar inimigos, ou que acha que conhecimento são títulos impressos em papeis não é mera coincidência…

Eis o que começamos a viver quando o que nos é privado se torna agenda política ou subterfúgio para uma nova agenda moral coletiva que impõe valores como se tudo fosse sinônimo de progresso. Para Huxley, quando tudo vira uma mera agenda política de uma revolução verdadeiramente revolucionária (que vai nas MENTES e CORPOS), “todos os padrões de vida humana existente serão rompidos, terão de ser improvisados novos padrões em conformidade com o fato não humano (ou seja de um engenheiro-social, de um planejador central, que acredita vislumbrar o melhor futuro do alto de sua inteligência)”. 

Entre os fatos não humanos, cito por exemplo, um paraíso na terra. Não é humano, pois dentro das nossas complexidades e subjetividades está esta força que, como diria o compositor Caetano Veloso, ergue e destrói coisas belas. Pois é, podemos encontrar boas frases em qualquer lugar…

Uma metáfora de Huxley para esta gente é quando ele diz que o planejador central de tudo “preparará a cama em que a humanidade deverá deitar-se; e se a humanidade não se ajustar, tanto pior para ela”. Como a meta é conquistar almas e mentes, o estímulo à burrice será uma constante. Afinal, “o problema é fazer com que as pessoas amem a sua servidão” em “um Estado totalitário verdadeiramente eficiente seria aquele em que os chefes políticos de um Poder Executivo todo-poderoso e seu exército de administrador controlassem uma população de escravos que não tivessem de ser coagidos porque amariam sua servidão”.

Claro, aqui não está tudo de um prefácio de 11 páginas. Mas, são 11 páginas que merecem ser lidas como se retiradas de uma cápsula do tempo. 

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