Para quem é jornalista todo livro-reportagem é um aula. Desde a apuração à construção do texto, passando pelo encadeamento dos fatos, a perspectiva que se adota no enredo e os critérios lógico-argumentativos que ressaltam a importância do tema ou fato escolhido ter sido objeto de investigação do autor da obra, tudo se torna um ensinamento que muitas vezes, nós repórteres, blogueiros, analistas, enfim...não encontramos nas academias.

É por esta razão que sou fã dos livros-reportagens e sempre intercalo minhas leituras com a apreciação de pelo menos uma destas obras por mês. Uma dos maravilhosos livros que li, neste sentido, foi A Irmandade do Crime de Carlos Amorim. Em um trabalho primoroso, Amorim traz a anatomia de organizações criminosas como o PCC e o Comando Vermelho.

Neste intento, Amorim mostra – por A mais B – o quanto os movimentos revolucionários do país contribuíram com o desenvolvimento das táticas de guerrilha e “marketing” destas facções criminosas quando, em um passado não tão distante, presos políticos e comuns conviveram nas celas do presídio Ilha Grande. Amorim mostra caos planejado e causado pela relativização de valores e pela perda de noção sobre quem é vítima e quem é culpado dentro de um corpo social, quando este se depara com as ações criminosas.

Amorim – que também tem outro trabalho de reportagem que vale a pena ser lido sobre a guerrilha do Araguaia – é responsável pelo que considero uma das maiores obras-primas do jornalismo literário brasileiro. Um livro cru, embasado e que mostra a evolução do crime organizado nos principais centros do país de forma histórico-gradativa e o quanto este se tornou orgânico.  Mostra ainda como as forças policiais ficaram para trás.

A edição que tenho foi lançada pela editoria Record. Dito isto, para exemplificar a importância destas obras, eis a mais recente que li: A Clínica, de Vicente Villardaga.

Pois é! A grata surpresa da Record: A Clínica, de Vicente Villardaga. A história é completamente outra. A obra de Villardaga é o relato dos crimes do médico especialista em reprodução humana Roger Abdelmassih. Os abusos cometidos pelo médico, a falta de ética na medicina e suas consequências brutais, bem como a mercantilização de tudo associada às estratégias de marketing, destacando o papel da imprensa nestes momentos ao construir “mitos” sem se dar conta do que realmente está fazendo.

Villardaga mostra que nem sempre o crime está associado à pobreza e que, muitas vezes,, atuando de forma silenciosa, vai acumulando vítimas. Neste caso, mulheres. De forma mais ampla, famílias. Abdelmassih ao abusar de pessoas transformou o sonho daquelas que o procuravam em pesadelo. Fez tudo isto nas barbas da imprensa, mas não se pode dizer que sem deixar rastros.

Como sua reputação – construída com a ajuda de um marketing – de eficiente o precedia, muitas denúncias, em redes sociais, por exemplo, não foram levadas em conta. Denúncias em conselhos também era silenciadas por influência do médico e corporativismo.  De acordo com o livro de Vicente Villardaga, Roger Abdelmassih contou com uma blindagem, mesmo com os indícios de tudo aquilo que se tornariam público estando sempre presentes. Um bom livro-reportagem tem isto: não é apenas o caso que está sendo relatado em si, mas todas as nuanças do que vem compondo o enredo que nos leva a diversas reflexões associando o que ali está sendo dito a outros casos.

Não por acaso que o livro A Clínica possui como subtítulo “A Farsa e Os Crimes de Roger Abdelmassih”. Uma ressalva ainda precisa ser feita: é preciso destacar o papel de Carlos Andreazza na editora Record. Como editor, Andreazza tem sido corajoso ao trazer para o público obras, tanto no campo da filosofia, da política, quanto na área do jornalismo.

Claro que A Clínica não é um livro apenas para jornalistas. Óbvio que não. É um livro que vale a pena ser lido por todos. Afinal, são obras assim que nos faz lembrar do título de uma das mais famosas obras de Nietzsche: “Humano, Demasiado Humano”. “Nada que é humano me é estranho”, como já frisava o compositor gaúcho Humberto Gessinger em uma de suas canções do fantástico álbum Minuano. 

Por fim, destaco um dos trechos da obra: “lembrava que estava saindo da sedação, em uma maca, sendo transportada para a sala de recuperação, quando acordou de repente, em pé entre a porta do banheiro e o corpo de Abdelmassih. Estava com a mão no pênis excitado do médico, que a beijava de língua e apalpava seus seios. Tomou consciência da situação e ficou “chocada e perplexa”. Com repulsa, pediu que o médico se afastasse. Ele saiu de perto, se aprumou e deixou a sala. Iris desceu as escadas chorando e pedindo para ir embora rapidamente”. 

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