Euclides da Cunha e o gorila

01/06/2016 10:58 - Bene Barbosa
Por Bene Barbosa
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Lá vou eu mexer em vespeiro e escrever sobre o tal gorila abatido no Jardim Zoológico de Cincinnati, Estados Unidos, após uma criança de quatro anos cair em seu fosso.

Boa parte da opinião pública e a maior parte da opinião publicada se colocou em favor do gorila, cheguei a ver, assustado, gente defendendo até o abate da criança! A culpa da criança ter caído foi dos pais? Foi do zoológico? O gorila mataria ou não o garotinho? Zoológicos não devem existir? Tudo isso são conjecturas e discussões muito fáceis – e até mesmo necessárias e válidas - de fazer após o incidente ter ocorrido, mas naquele momento urgente e confuso, o diretor tomou a decisão que lhe pareceu a mais correta.

Ao refletir sobre o caso lembrei de uma tragédia brasileira que se desenrolou com o embate entre o escritor de “Os Sertões”, Euclides da Cunha e o militar, e também escritor, Dilermando Cândido de Assis. Dilermando, para quem não sabe, matou Euclides pai e, sete anos depois, o filho deste.

Entendendo corretamente que Dilermando agiu em legítima defesa a justiça o absolveu em ambos o caso, mas a inconteste absolvição não ocorreu pelas mãos invisíveis da opinião pública e, menos ainda, da publicada. Apenas duas proeminentes vozes se levantaram em defesa do jovem militar, campeão de tiro do Exército Brasileiro: o jornalista e compositor Orestes Barbosa e Monteiro Lobato que, mesmo sendo um devoto de Euclides, se colocou no lugar de Dilermando e publicou o artigo intitulado “Uma Tragédia de Ésquilo”, que transcrevo abaixo:

“Tivemos aqui entre nós, em 1909, um perfeito ´caso de tragédia grega´, isto é, de tragédia caracterizada pela presença invisível da deusa Fatalidade. Os protagonistas — Dilermando, Euclides pai e filho e uma mulher — agiram todos como pedras de xadrez em movimento cego no tabuleiro. As pedras de xadrez movem-se — julgam mover-se, na realidade são movidas de acordo com os planos concebidos pelo jogador e que jamais serão penetrados.

Somos todos pedras de xadrez no tabuleiro da vida. Uns somos peões, outros bispos, outros, torres, outros, cavalos — e rainha e rei. Hitler foi um rei de xadrez. Jogaram com ele uma tremenda partida — e ele sempre a julgar que quem fazia o jogo era ele. E como não ser assim, se ele era “rei”?

Pobres reis humanos, tão impotentes quanto os reis de xadrez — tão instrumentos do Algo Superior que os maneja como reis de xadrez. Pobres peões humanos, tão manejáveis como os peões de xadrez! Alguém brinca no tabuleiro da vida com o teatrinho de títeres que somos. Édipo, Jocasta, Orestes, Dilermando, Euclides…

Euclides era rei, Dilermando, pequenino peão. No tumulto do drama tecido pela fatalidade, o rei enlouqueceu e forçou o peão a matá-lo. Um regicídio! A sociedade sofreu o mais profundo dos abalos porque Euclides não era apenas por direito de nascimento, coisa medíocre: era um grande rei por merecimento, coisa grande. E todas as fulminações choveram sobre a cabeça do peão que teve de matar o rei. E a vida desse peão passou a ser um inenarrável martírio.

Mas, dadas as circunstâncias, que poderia ele fazer senão o que fez? Como agir de outra maneira, se somos títeres e quem dirige a trama é a grande jogadora de xadrez fatalidade, a qual se utiliza de nós como simples peças, nunca se dignando nos revelar os objetivos de suas jogadas?

Para a sociedade não há crime maior que o de peão matar um rei; e pois tal fato só é possível quando a fatalidade guia a mão do regicida.

A mim a tragédia Euclides-Dilermando me abalou profundamente. Sobre ela meditei muito tempo, dominado pela incerteza. Mas quando conheci todos os detalhes do processo, só então vi, senti em tudo a mão glacial e inexorável da fatalidade — a mesma que levou aos seus crimes o inocente Orestes.

E uma coisa até hoje me pergunto: haverá uma só criatura normal das que olham Dilermando com horror, que, dentro do quadro daquelas circunstâncias, não fizesse a mesma coisa? Que atacada por Euclides e o filho, tomados ambos de acessos de demência, não se defendesse, como Dilermando se defendeu?

Se ponho a mão na consciência e me consulto, sou obrigado a confessar que, dentro daquelas circunstâncias, eu — o maior devoto de Euclides — agiria tal qual Dilermando. O animal que há dentro de mim, ferozmente acossado pelo animal existente no atacante, reagiria em pura ação reflexa — e no ímpeto cego da legítima defesa mataria até ao próprio Shakespeare”.

Bah! – diria um amigo gaúcho – onde quer chegar o professor Bene com essa história toda? Explico e confesso que tudo isso foi tão somente para poder parafrasear Lobato e emitir minha opinião sobre o caso: colocando-me no lugar do diretor, no ímpeto de salvar o garotinho, não hesitaria em mandar abater o próprio King Kong. E que venha o mimimi.

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