Em breve fará um ano do desaparecimento de Davi da Silva. O inquérito policial concluiu que o jovem que tinha 17 anos saiu de casa, na manhã do dia 25 de agosto de 2014, uma segunda-feira, com um amigo. Foi abordado por uma guarnição da polícia militar, apreendido na posse de uma “bombinha” de maconha, colocado na viatura e nunca mais foi visto.
No último dia 5 de agosto, faltando 20 dias para completar um ano do sumiço de Davi da Silva, o Ministério Público Estadual (MP) ofereceu denúncia, por tortura seguida de morte e ocultação do cadáver, contra os quatro militares indiciados no inquérito. A ação penal tramita hoje na 14ª Vara dos Crimes contra a Criança, o Adolescente e o Idoso.
Foram responsáveis pela denúncia os promotores Thiago Chacon Delgado e Dalva V. Tenório e o procurador-geral de Justiça Sérgio Jucá. Os membros do MP concluíram que Eudecir Gomes, Carlos Eduardo Ferreira, Vitor Rafael Martins e Nayara Andrade, todos soldados do Batalhão da Radiopatrulha, são responsáveis pelo desaparecimento de Davi da Silva.
Davi teria sido torturado para confessar envolvimento com traficante
Segundo a denúncia formulada pelo MP, o crime de tortura se configurou em diversos momentos. Os policiais teriam, “com emprego de violência e grave ameaça”, causado “sofrimentos físicos e mentais” nas vítimas – Davi e seu colega –, “em plena via pública, e, em ato contínuo, algemaram o menor Davi Silva, colocaram-no dentro do camburão, sequestrando o mesmo, tendo este sido torturado até o óbito”.
Importante esclarecer que o relatório policial, ao final das investigações, apurou que Davi ficou muito nervoso com a abordagem e que, por isso deixou cair a “bombinha” de maconha, também revelou que Davi era gago e que não conseguiu se explicar à policial Nayara Andrade que se ofendeu com a droga no chão e que, enquanto Davi já estava no camburão da viatura, a outra testemunha foi agredida, a pretexto de uma revista policial de rotina, tendo sido agredido em suas partes íntimas.
Os promotores mencionam ainda, que as primeiras informações obtidas pela mãe de Davi, Maria José da Silva, foram no sentido de que “Davi Silva havia sido levado na mala da viatura para destino ignorado, já sofrendo maus tratos e tortura física e psicológica”. Segundo consta na denúncia, o motivo pela tortura também foi revelado pela testemunha.
“Os denunciados queriam que os adolescentes confessassem ser ou informassem onde poderia ser encontrado o ‘neguinho da bicicleta’, um traficante procurado pela polícia, que atuava na região”.
Teria sido também motivo para a apreensão de Davi e liberação do colega, o fato de que “Davi Silva, nervoso, derrubou a droga e foi repreendido pela policial e indiciada SD PM NAYARA, que se sentiu ofendida e perguntou-lhe se achava que ela era uma ‘cachorra’”.
Por fim, “a materialidade e os indícios de autoria podem ser constatados suficientemente através dos depoimentos da vítima[amigo de Davi], a qual relata claramente as agressões físicas sofridas por ele e a intimidação psicológica que infligiram sobre o adolescente Davi Silva, culminando com a sua morte, somando aos demais elementos informáticos colhidos pela diligente delegacia”, concluiu a denúncia quanto à tortura que os promotores atribuem aos militares.
Quanto à tortura, os promotores concluíram que “a culpabilidade dos quatro integrantes da guarnição se divide igualmente, uma vez que todos contribuíram para as agressões físicas e psicológicas praticados contra as vítimas”, levando Davi ao óbito. “Nota-se que, pela dinâmica dos fatos, que a morte da vítima Davi Silva deu-se a título de culpa, já que a intenção dos indiciados era torturar para obter informações dos traficantes da região, sendo o caso de crime preterdoloso”.
E, no direito, preterdoloso é o crime que ocorre quando o agente pratica uma conduta dolosa, menos grave, no caso a tortura para que Davi confessasse, porém obtém um resultado danoso mais grave do que o pretendido, na forma culposa, a morte da vítima. |CA
Visando crime perfeito, militares teriam ocultado cadáver de Davi
Os policiais também foram denunciados pelo crime de ocultação de cadáver. Passados quase um ano, só recentemente um corpo apareceu e foi reconhecido, com dificuldades, pela mãe e pela irmã de Davi da Silva. Até o fechamento desta edição ainda não havia certeza sobre a identidade deste corpo encontrado no último dia 08 de agosto, no conjunto José Tenório, no bairro da Serraria.
Entretanto, ainda que o corpo encontrado seja de Davi, inicialmente foi ocultado, “pela motivação de esconder vestígios de outro crime, nesse caso a tortura seguida de morte do adolescente Davi Silva”, conforme diz a denúncia. Para os promotores, a ação dos policiais acusados “foi consciente e voluntária, em comunhão de desígnios, agindo por comissão, todos os policiais”.
Ou seja, o MP entendeu que os militares decidiram e agiram para esconder o corpo com a finalidade de encobrir o crime de que são acusados. “Justifica-se com o sumiço de Davi Silva, visto pela última vez amarrado dentro da viatura da Rádio Patrulha. Ademais a viatura utilizada pelos sequestradores fora identificada como viatura policial pela população, bem como estes foram vistos colocando Davi Silva, na cela do camburão”, diz a denúncia.
Depois que o suposto corpo de Davi apareceu, o MP emitiu nota informando que acompanhará o desenrolar do caso e se os exames comprovarem que se trata de Davi irão “decidir de que forma fará o aditamento à denúncia, ou seja, analisará como acrescentar novos elementos à ação penal”.
Investigação conclui pela identificação da guarnição que abordou Davi
A narrativa oferecida ao juiz Odilon Marques Luz diz ainda que a guarnição pode ser identificada pelo colega de Davi, sobrevivente e principal testemunha dos fatos, por ser composta por três homens e uma mulher e por se tratar da “guarnição da Radio Patrulha, por identificar o logotipo da viatura e seus sinais, um cão da raça ‘pitbull’ e também pelos policiais estarem usando ‘farda camuflada’”.
Os promotores mostraram que as alegações da testemunha principal foram confirmadas por outras testemunhas secundárias, que “presenciaram o momento da abordagem policial às duas vítimas; que eram sim quatro policiais, sendo três homens e uma mulher; que os agentes policiais usavam uma roupa camuflada; que na viatura havia um desenho de um cachorro da raça pitbull; que após revistarem três rapazes dois foram liberados, sendo que um deles foi algemado e colocado na mala da viatura, tomando destino incerto”.
As investigações conduzidas por diversos policiais civis, concluiu por duas possíveis guarnições e após reconhecimento pela testemunha ocular, que também foi vítima, restou uma guarnição reconhecida. Após o reconhecimento, foi pedida a quebra do sigilo dos dados telefônicos dos policiais e também dos telefones funcionais disponíveis para a RP, usados pelos militares naquele dia.
Mapeando as estações de radio base (ERB), concluiu-se que a guarnição estaria mesmo no local da abordagem policial, no momento alegado pelas testemunhas. Os promotores se mostraram convencidos de que a investigação policial concluiu corretamente ao indiciar os militares. No entanto, os próprios promotores revelam que houve contradição entre os depoimentos da principal testemunha dos últimos momentos de Davi da Silva.
“É verdade que, em um primeiro momento, a vítima[colega de Davi], perante o Ministério Público afirmou não reconhecer nenhuma das policiais femininas que lhe foram apresentadas, às fls. 33, contudo, posteriormente, a vítima explica que se sentiu intimidade e amedrontado em realizar o reconhecimento proposto no referido local, haja vista que eram policiais militares que iriam conduzi-lo de volta a sua residência, após o reconhecimento, sendo este o motivo de não ter falado inicialmente, como sendo um dos policiais que o abordou, junto à vítima Davi Silva, no dia do fato”, justificaram os promotores na denúncia. |CA
Defesa de policiais sugere que Davi teria sumido por “implicação com tráfico”
Os quatro militares contam com o mesmo defensor. O advogado Leonardo Moraes conversou com a reportagem do CadaMinuto Press e entrou em alguns detalhes da defesa que está elaborando. “A gente tem a convicção de que eles são inocentes”, afirmou Moraes, que esclareceu que não poderia revelar tudo o que sabe por questões estratégicas.
O advogado acha que todas as linhas de investigação deveriam ter sido exploradas, mas que apenas a da abordagem policial foi investigada. Moraes levantou uma possibilidade que ninguém investigou. Para Leonardo Moraes, se as vítimas foram apanhadas com maconha podem ter implicação com tráfico ou traficante.
“É possível que nessa relação com tráfico ou traficante tenha acontecido algo com eles. Esta é uma linha, através de outra pessoa, mas nós temos que averiguar melhor para não darmos uma informação aqui que lá na frente seja inverídica. Mas o envolvimento dele com o tráfico é uma demonstração de que pode existir outras pessoas com interesse de matar ele, que de fato deve ter sido o que ocorreu”, imagina o defensor dos únicos acusados pelo desaparecimento de Davi da Silva.
A defesa pretende estar pronta para o caso de a denúncia ser recebida pelo juiz. “Assim que for citado, a gente já apresenta para superar logo esta fase, porque está demorando um bocado. Esse processo vai e volta. Incrível como ele não deixa de ser notícia”, avaliou.
Moraes revelou que pretende requerer várias diligências, mas citou apenas uma: “as ERBs que foram realizadas foram das 8h até às 10h, vamos solicitar agora as ERBS das 7h até 11h. Porque as ERBs vão detectar qual o trajeto feito pelos policiais de acordo com os sinais que foram captados, inclusive para saber se na volta eles estiveram realmente no bairro onde foi localizado o corpo”.
O advogado explicou que as estações de radio base podem dar uma ideia de local e hora em que a guarnição se encontrava, portanto do trajeto, como a própria polícia fez nas investigações. Moraes acredita que desta forma conseguirá provar que na hora da abordagem que é atribuída a seus clientes eles não estavam no local.
Moraes revelou ainda que sua tese de defesa será de negativa de autoria, “porque o próprio processo deixa claro que não há como os policiais terem estado lá”. Segundo Moraes, a principal testemunha entrou em contradição quanto ao horário da abordagem. “Há uma suspeita de que o depoimento por ele prestado foi direcionado, agora, por quem, a gente não sabe”, conjecturou.
“Falta de lógica”
Perguntado se ele pretendia atribuir o crime a outra guarnição, Moraes revelou um pouco mais da defesa. “Não podemos afirmar que foi outra guarnição, porque segundo as testemunhas, foram pessoas com roupas rajadas. Pode ser polícia militar ou força nacional, que abordaram eles”. E completou: “O que eu acho é que seja ilógico que uma pessoa que queira matar um jovem, torture o jovem na frente de uma plateia, leve o jovem para o carro alegando que vai matá-lo, libere o outro para servir de testemunha. Tudo feito em plena luz do dia”.
Fragilizando o depoimento da principal testemunha, o advogado de defesa alegou que a única testemunha se contradiz “nele mesmo, porque as outras testemunhas disseram que não têm condições de reconhecer os policiais, todas elas”. O advogado aproveitou para explicar que a defesa gostaria que o corpo encontrado fosse de Davi da Silva, pois, no seu entendimento, ajudaria à defesa.
No entanto, confessa que não acredita que seja realmente o corpo da vítima. “Nós achamos que realmente o corpo não pertence ao Davi. A informação de que o corpo teria sido colocado em outro local e depois colocado onde foi encontrado, esse outro local teria que ser refrigerado, o que é realmente improvável, foge até à lógica”.
Juiz recebeu denúncia “do jeito que veio”, convencido por elementos da acusação
O advogado de defesa Leonardo Moraes disse à reportagem que ainda não tinha sido citado para apresentar defesa, mas o juiz titular da 14ª vara Criminal da Capital, Odilon Marques Luz, assegurou que já analisou e recebeu a denúncia.
O magistrado salientou que recebeu a denúncia “do jeito que veio”. Ou seja, Marques Luz foi convencido dos argumentos da acusação quanto à materialidade e autoria do crime, pelo menos da existência de elementos para que os militares sejam processados pelo desaparecimento de Davi e pelas torturas infligidas também à testemunhas que esteve com Davi.
Além das razões da acusação, a denúncia oferecida pelos promotores e pelo procurador-geral de Justiça continha alguns requerimentos, como: “seja dada prioridade processual a este caso”, bem como a “oitiva antecipada” da principal testemunha que já foi incluída, segundo confirmou o magistrado, no programa de proteção à criança e adolescente ameaçados de morte.
Todos os requerimentos foram aceitos pelo juiz. Marques Luz revelou ainda que “a defesa já foi intimada”. Mas até o fechamento desta edição, Leonardo Moraes, advogado de defesa, não confirmou o recebimento da intimação. |CA
Um ano após sumiço de Davi, sindicância administrativa foi concluída na PM
Somente após um ano do desaparecimento de Davi da Silva, o caso Davi virou ação penal. Durante estes mais de 350 dias a família continuou buscando informações sobre o rapaz ou e os acusados, mas nada de revelação concreta.A investigação policial encontrou dificuldades desde o primeiro momento. Qual teria sido a guarnição? Quem teria sido a mulher policial? Dirimidas as primeiras dúvidas dos investigadores, o que só ocorreu mais de dois meses depois, deu-se início realmente à investigação sobre os acusados. Levou tempo, mas muito mais tempo tem levado a sindicância aberta pela Corregedoria da Polícia Militar para apurar se houve transgressões disciplinares.
A investigação policial concluiu pelo sequestro, cárcere privado, homicídio e ocultação de cadáver cometido pelos policiais contra Davi e o crime de tortura cometido contra a outra vítima. Por esta razão, o processo esteve todo o tempo na 5ª vara criminal do Tribunal do Juri. Mas como o promotor daquela vara, Flávio Gomes, entendeu que era caso de tortura seguida de morte, o processo mudou de competência e foi para a 14ª vara criminal.
Enfim, o caso Davi virou ação penal. A denúncia foi oferecida e recebida. Durante todo esse tempo a sindicância para apurar responsabilidades administrativas não foi concluída. O corregedor da PM/AL, coronel Antonio, reconheceu à reportagem a demora na resolução desta sindicância, mas atribuiu às dificuldades em ter acesso à investigação policial.
“Pela dificuldade do encarregado conseguir as informações que estavam no inquérito, pois este estava correndo em sigilo. Há provas que o processo administrativo não conseguia”, por estas razões algumas testemunhas ainda não foram ouvidas e novas diligências foram pedidas. O corregedor explicou que o processo foi concluído, mas que foram necessárias novas diligencias para que fosse dada uma solução.
A reportagem perguntou se haveria algum beneficiamento aos militares investigados, se seria esta a razão da demora. Mas o corregedor assegurou que isto não é possível, “até porque há um processo judicial que vai revelar o que realmente aconteceu”. O coronel explicou ainda que é possível deixar o
processo sobrestado enquanto não há uma sentença, pois “há transgressões disciplinares militares que só ocorrem com decisão judicial”.
Segundo o corregedor, os militares que respondem pelo desaparecimento de Davi da Silva não estão mais em trabalho nas ruas. “Desde que os militares foram indiciados pelos delegados do inquérito, os quatro militares saíram da rua e estão em trabalho burocrático”. O que foi confirmado pelo advogado de defesa dos militares.