Recebi o seguinte artigo escrito pelo consultor de políticas de segurança pública, Pedro Montenegro, que faz uma reflexão sobre a postura de gestores das políticas de segurança pública.
Publico o texto abaixo, não porque sou citado ao final do artigo, junto com respeitados colegas de trabalho, mas por entender ser importante compartilhar este pensamento com gestores públicos, jornalistas, enfim, com a sociedade.
Confira o artigo na íntegra:
A SÍNDROME DE SUPERMAN:
A CRENDICE NO IMEDIATISMO E EM OUTROS SUPERPODERES NA SEGURANÇA PÚBLICA
Pedro Montenegro - Consultor de Políticas Públicas de Segurança e Direitos Humanos.
“A gente precisa de um Super-homem
Que faça mudanças imediatas.”
Edson Gomes, Criminalidade.
O cientista social Marcos Rolim¹, valendo-se dos personagens clássicas da literatura mundial, Alice e a Rainha Vermelha, criadas pelo escritor inglês Lewis Carroll, alcunhou magistralmente como a Síndrome da Rainha Vermelha, uma das moléstias mais severas da segurança pública brasileira:
“[...] De um momento para outro, sem que Alice saiba exatamente o motivo, as duas passaram a correr de mãos dadas em uma variedade crescente. A Rainha gritava o tempo todo: “Mais rápido, mais rápido!” E a menina mal conseguia acompanhá-la. Correram tão depressa que se sentiram como se estivessem flutuando até que, exaustas, pararam para descansar. Nesse momento, Carroll (2002) construiu o seguinte diálogo:
Alice olhou ao redor muito surpresa:
- Ora, eu diria que ficamos sob esta árvore o tempo todo! Tudo está exatamente como era!
- Claro que está, esperava outra coisa? perguntou a Rainha.
- Bem, na nossa terra, responde Alice, ainda arfando um pouco, geralmente você chegaria a algum outro lugar... e se corresse rápido por um longo tempo, como fizemos.
- Que terra mais pachorrenta! comentou a Rainha. Pois aqui, como vê, você tem que correr o mais que pode para continuar no mesmo lugar.”
Esse paradoxo metafórico ilustra bem essa síndrome pestilenta que acomete a segurança pública, onde quanto menos funcionam as políticas públicas praticadas na área, mais são privilegiadas com os recursos públicos e prestigiadas pelas autoridades do setor.
Desafortunadamente, a segurança pública, concomitantemente à nefasta síndrome da Rainha Vermelha, padece de outra síndrome tão virulenta como aquela: a Síndrome de Superman.
Criado na primavera de 1938, pelo escritor norte-americano Jerry Siegel e o cartunista canadense Joe Shuster, o super-herói dos quadrinhos, Superman, é produto do contexto de profunda crise e incerteza econômica nos EUA.
A mesma atmosfera de crise, de medo, de descrença e desesperança que outrora criou a ambiência ideal para o estrondoso sucesso do Superman na América, nutre hoje a galopante popularidade dos seus séquitos na segurança pública no Brasil.
Segundo dados coligidos no 8º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública:
No Brasil a cada 10 minutos, 1 pessoa é assassinada;
490 policiais tiveram mortes violentas no ano de 2013. Nos últimos 5 anos a soma é de 1.770 policiais vitimados. No mesmo período, as polícias brasileiras mataram 11.197 o equivalente ao que as polícias dos EUA em 30 anos, 11.090;
Foram 53.646 vítimas de crimes violentos letais intencionais em 2013, incluindo vítimas de homicídios dolosos e ocorrências de latrocínios e lesões corporais seguidas de morte;
50.320 casos de estupros registrados no país em 2013, ressalvando-se que consoante às pesquisas internacionais, apenas 35% das vítimas de estupro relata o fato à polícia, não seria de todo improvável, termos tido no Brasil no ano de 2013, o funesto montante de 143 mil estupros.
A Síndrome de Superman manifesta-se na crendice que essa gravíssima situação da segurança pública pode ser alterada imediatamente, quase que instantaneamente, no apelo voluntarioso e vigoroso a ação heroica e no eximir do dever de pensar ou até no impedimento de pensar ativamente.
A Síndrome de Superman é bastante sedutora e envolvente, porque nela há referências chaves no inconsciente coletivo da sociedade brasileira: o culto ao individualismo, o gosto pela ação, à visão maniqueísta do mundo, a mixofobia (medo típico das grandes cidades, a fobia de se misturar com outras
pessoas) e ainda na alusão aos justiceiros que encarnam a lei e a ordem a qualquer custo.
A virulência da infestação da Síndrome de Superman na sociedade é diretamente proporcional à agudeza do quadro de insegurança e violência: quanto maiores são as dificuldades, tanto maior a necessidade de figuras heroicas.
Assim, como na popular história em quadrinhos, o herói Superman possui uma fraqueza letal: a Kryptonita, material formado de fragmentos radioativos de Krypton, o seu planeta natal, a Síndrome de Superman na segurança pública carrega dentro de si a fraqueza que a corrói: a ilusão que a violência e a criminalidade podem ser superadas pela ação de Super-heróis, que como deuses são capazes de mudar instantaneamente o curso da história.
Dedico esse artigo aos jornalistas Davi Soares, Odilon Rios e Ricardo Mota que sofrem invariavelmente as agruras de contrariar aos poderes dos Super-homens.
¹ Rolim, Marcos. A síndrome da rainha vermelha: policiamento e segurança pública no século XXI. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.