Nesta semana, as Páginas Vermelhas do CadaMinuto Press entrevista o escritor e jornalista Lira Neto que se destacou nacionalmente com a biografia de Padre Cícero e os três volumes que detalham a vida do ex-presidente Getúlio Vargas. O mais recente dos três volumes foi lançado neste mês e traça o perfil de Vargas entre os anos de 1945 e 1954, culminando no suicídio.

A mais recente obra tem como subtítulo “Da volta pela consagração popular ao suicídio”, em um 24 de agosto. Em entrevista ao CadaMinuto Press, Lira Neto destaca a forma como a história foi deturpada ao longo dos anos no Brasil, sendo sempre contada – como ele mesmo coloca – por um único viés. Neto – assim como Marco Vila, Laurentino Gomes e Narloch – faz parte de um time de escritores que assumiram o desafio de passar a limpo alguns episódios da história brasileira. Confira a entrevista na íntegra.

Nos últimos anos o mercado editorial publicou uma série de obras de extrema relevância em relação à releitura de importantes fatos históricos, como as de Marco Vila, do Laurentino Gomes e a sua trilogia de Getúlio, além da biografia de Padre Cícero também de sua autoria. Como o senhor enxerga a importância deste momento? É uma coincidência – em sua opinião – ou a uma conjuntura favorável a estas releituras?

Creio que vivemos um momento riquíssimo de busca por conhecimento histórico. Talvez isso seja um sintoma de que estamos procurando entender melhor o que somos e, também, compreender que país fomos construindo ao longo do tempo. Durante décadas, a história brasileira foi deformada, contada por um único viés, oficialesco, parcial, chapa-branca. As novas narrativas e releituras históricas permitem que ampliemos nossa compreensão sobre o tempo histórico, a partir de outras perspectivas, mais arejadas, menos restritivas.

O senhor – ao publicar sobre Getúlio Vargas – acabou percorrendo, em detalhes a história do Estado Novo. É a ditadura mais dura de nossa história? Qual paralelo o senhor faria com o período de repressão que – geralmente – é o mais estudado nas escolas, como a ditadura militar?

O Estado Novo foi um regime de força, uma ditadura perversa, que perseguiu adversários, torturou militantes de esquerda, censurou a imprensa. Sua ferocidade foi tão grande quanto a do regime militar pós-1964. O curioso é que os mesmos atores históricos que exigiram a renúncia de Getúlio em 1954 foram os artífices do golpe que depôs João Goulart, o maior herdeiro político do getulismo, exatos dez anos depois. Eram os mesmos que denunciavam o autoritarismo de Getúlio e o acusavam de querer, mais uma vez, se perpetuar no poder. Na verdade, eles próprios já articulavam um golpe contra as liberdades civis e democráticas.

Getúlio é uma figura ímpar na história do país. Em alguns momentos é colocado como um herói, o pai dos pobres, relembrando pelas leis trabalhistas, enfim...em outros, este mesmo presidente é lembrado como um ditador, sobretudo quando se relaciona os casos envolvendo Olga e Luis Carlos Prestes. Como o senhor definiria a figura política de Getúlio Vargas depois desta trilogia tão detalhista que lançou?

Procurei retratar Getúlio em toda a sua complexidade, com todas as suas contradições. Ele foi, sem dúvida, o construtor do Brasil moderno, indutor do processo de urbanização e industrialização do país. Ao mesmo tempo, tinha uma personalidade autoritária, em parte herdada do caldo de cultura do positivismo gaúcho, onde fez sua iniciação política. Tentei escapar da armadilha fácil da dicotomia, da polarização e do maniqueísmo. Como bem assinalou o historiador Boris Fausto na quarta capa do primeiro volume, Getúlio foi, para o bem e para o mal ressalte-se, a principal personagem da história brasileira do século XX.

O senhor estudou um período em que envolve os ideias da esquerda, a busca pela tomada do poder por parte dos comunistas, enfim...uma época em que a luta por ideias efervescia no país e gerou personagens que até mudaram de lado, como Carlos Lacerda, por exemplo. É possível comparar aquela esquerda com a atual esquerda que chegou ao poder no Brasil? Quais semelhanças? Quais diferenças?

Cada época tem as suas devidas singularidades e é temerário tentar analisar um determinado período histórico com os olhos de outro. Mas, sem dúvida, a esquerda brasileira, assim como a esquerda mundial, passou por um longo processo de reelaboração de estratégias, princípios e métodos de ação. Não poderia ser diferente. O golpismo comunista de 1935, por exemplo, foi substituído pela compreensão de que o voluntarismo e a violência não são os meios mais adequados e eficientes de se chegar ao poder. As esquerdas aprenderam o caminho da negociação, do estabelecimento de alianças pontuais e necessárias.

A trilogia de Getúlio Vargas escrita pelo senhor possui uma característica que chama atenção. É um livro que – apesar de denso – tem uma escrita objetiva e detalhista, que nos permite traçar o perfil psicológico dos personagens envolvidos, como quando você fala sobre o isolamento de Vargas após deixar a presidência, já no terceiro volume. Isto atrai um leitor mediano, o estudante do Ensino Médio, enfim. O livro também tem este foco? Como o senhor vê a importância destas obras adentrando este universo e causando interesse em estudantes que já andavam tão distantes dos livros?

Procuro, sempre, conciliar o rigor da pesquisa histórica com um texto jornalisticamente atraente. O grande desafio a que me proponho é escrever uma obra que possa ter algo a acrescentar à reflexão do leitor especializado e, ao mesmo tempo, ser decodificável pelo leitor leigo, não iniciado, o que, óbvio, inclui os jovens. A consistência, acredito, não é incompatível com o prazer do texto.

Qual a diferença entre o Getúlio ditador e aquele que foi reconduzido ao poder pelo voto popular? Afinal, pela forma como o senhor coloca na obra, as negociações com o PSD e a forma como Vargas se posiciona no último momento para concorrer as eleições também acaba soando como um golpe no mínimo de inteligência, para não dizer no máximo...

Ao promover a sua reentrada no cenário político, em 1950, Getúlio tinha a consciência de que teria de fazê-lo seguindo, necessariamente, dessa vez, as regras do jogo democrático. E foi extremamente habilidoso para estabelecer alianças estratégicas que o conduziriam de volta ao Catete. Uma vez reinvestido no poder máximo da República, enfrentou a hostilidade do Congresso, da imprensa e dos militares sem jamais ter cogitado um retorno ao regime de exceção, embora o então ministro da Justiça, Tancredo Neves, tivesse sugerido a ele a hipótese da decretação do estado de sítio. Getúlio não aceitou a sugestão.    

Além da trilogia de Vargas, qual outro presidente do país mereceria – em sua opinião – uma obra tão detalhista e completa? Por que?

Getúlio é um caso singular na história política brasileira e, creio, por isso mesmo irrepetível. A própria extensão do período que passou à frente do poder justifica a proposta de uma biografia em três volumes. Não há, na história republicana brasileira, nada que possa se comparar a isso. 

O senhor já trabalha em algum outro projeto? Pode adiantar qual seja em caso de resposta positiva?

Acabo de assinar com a Companhia das Letras um contrato de edição para um novo trabalho de fôlego. Mas por enquanto não posso adiantar nada sobre o assunto. A única coisa que posso dizer é que dessa vez, não será uma biografia, mas uma reportagem histórica.

O Brasil é uma democracia jovem que esquece muito fácil de seu passado. Alguns analistas políticos chamam a atenção do perigo disto, sobretudo no momento atual em que há uma discussão polarizada entre dois partidos que – em maior ou menor grau – estão no campo das esquerdas e defendem um estado menos ou mais intervencionista. O senhor também enxerga assim?

No Brasil, atualmente, temos dois grupos políticos principais que vêm disputando o poder nas últimas décadas. De certa forma, de fato, essa dicotomia tem como matriz a discussão sobre o tamanho do estado e a intervenção na economia, temas que estão em pauta desde a época de Getúlio. O projeto nacional desenvolvimentista do getulismo encontra certa ressonância no projeto petista, enquanto o PSDB, embora se defina como um partido social democrata, tem abrigado em seus quadros defensores do estado mínimo e, portanto, do liberalismo.    

O atual governo do PT é apontado – também por muitos críticos – como autoritário e avesso à democracia. O senhor concorda com esta visão?

Esse tipo de análise empobrece a discussão política. Toda polarização leva à radicalização dos discursos e à adjetivação fácil. Chamar o adversário de petralha autoritário é tão vazio de argumento quanto chamá-lo de tucanalha privatista ou coisa parecida.   

Por fim, qual a maior contribuição de Getúlio para o país em sua visão e qual o maior erro que este presidente cometeu e por qual razão estas escolhas?

Essa é uma pergunta que não admite uma resposta fácil e rápida. Escrevi três livros para tentar respondê-la. Convido os leitores a se debruçarem sobre a biografia para elaborarem suas próprias conclusões a respeito.

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