A publicação de biografias no Brasil tem gerado polêmica em razão de dois artigos do Código Civil, que entrou em vigor em 2003. Especialistas se dividem sobre o alcance da norma: se ela prevê ou não uma autorização prévia para esse tipo de obra. Além de diversos processos em andamento no Judiciário, a questão é alvo de ação no Supremo Tribunal Federal (STF) e tema de um projeto de lei de 2011, que aguarda análise pela Câmara dos Deputados.
A prévia autorização para biografias voltou a ser debatida depois que a ex-mulher de Caetano Veloso, Paula Lavigne, travou um embate nas redes sociais com a colunista do jornal “Folha de S.Paulo” Barbara Gancia. A discussão gerou repercussão entre biógrafos e artistas como Chico Buarque e Caetano Veloso.
As opiniões a favor e contra a publicação de biografias são baseadas no Código Civil e na Constituição Federal. Para uma parte, não há na lei uma proibição clara de publicação de biografias sem autorização do biografado. Para outra, o código prevê essa figura, que vem sendo utilizada por artistas ou suas famílias para recolher obras, mas também criticada sob a alcunha de "censura prévia".
Segundo especialistas ouvidos pelo G1, a palavra final sobre as biografias deve ser dada pelo Supremo, que marcou audiência pública sobre o tema para os dias 21 e 22 de novembro. A Corte quer ouvir especialistas, historiadores, juristas e cidadãos que tiveram ou podem ter suas vidas biografadas antes da decisão.
O que diz a lei
A Constituição Federal trata dos direitos fundamentais de todo cidadão em seu artigo 5º. Dois deles servem de base às ações sobre biografia: a liberdade de expressão e o direito à intimidade. Já o Código Civil fala sobre a utilização da imagem de uma pessoa e hipóteses em que ela atinja sua honra e respeitabilidade ou que tenha fins comerciais.
A lei vale não só para biografias de artistas, cantores, personagens da história, políticos e qualquer outra figura pública, como também para uma pessoa comum, e surge a partir de 2003, quando o novo código entrou em vigor.
nterpretações
Segundo a advogada Mariana Trevisioli, o artigo 20 do Código Civil surge para proteger o direito à intimidade que existe na Constituição, balanceando-o com a liberdade de expressão, mas acabou não conseguindo responder à pergunta: "Até que ponto o direito à intimidade e à privacidade se sobrepõe ao acesso à informação e ao acesso à cultura?"
Segundo ela, o dispositivo legal "acabou se revelando uma norma bastante ampla". "Todo aparato legislativo que existe hoje já leva a essa conclusão de que eu posso expressar meu pensamento escrevendo uma biografia, contudo, dentro de certos limites", defende a advogada.
Segundo ela, "a interpretação que vem sendo dada a esse artigo 20 é restritiva". "À luz da Constituição, há o direito à liberdade da expressão, assim, a ideia [do Código Civil] era criar uma limitação ao exercício desse direito: não posso abusar, mas posso falar de uma outra pessoa", afirma. "No contexto legal, político da época da Constituição, se clamava em se livrar das amarras da censura. Tenho a prevalência do interesse público sobre o privado", diz a especialista.
A Associação Nacional dos Editores de Livros (Anel) quer que o STF declare os artigos 20 e 21 do Código Civil inconstitucionais. A ação foi protocolada no Supremo em julho de 2012 e distribuída à ministra Cármen Lúcia. Segundo a Anel, esses artigos devem ser interpretados conforme a Constituição Federal, que prevê a liberdade de expressão e informação.
Para a associação, pessoas “cuja trajetória pessoal, profissional, artística, esportiva ou política, haja tomado dimensão pública, gozam de uma esfera de privacidade e intimidade naturalmente mais estreita”. Além disso, o biografado poderá responsabilizar o biógrafo em caso de abuso e pedir indenização.
Público x Privado
Para Roberto Mortari Cardillo, ex-procurador da República e especialista em Direito Civil, é preciso haver ponderação entre dois direitos, o direito à liberdade de expressão e à privacidade. “Não existe nenhum direito absoluto, mesmo que previsto na Constituição”, afirma.
“Quando se trata de pessoa viva, ela tem direito de opinar sobre a vontade, o desejo ou não de ver a sua biografia publicada. A lei até leva isso em consideração. Uma coisa é uma figura pública e outra coisa é a vida privada dessa pessoa”, complementa.
“O Código Civil prevê a preponderância do direito à privacidade. Eu sou pela prevalência desse direito à intimidade ou à privacidade”, afirma Cardillo.
Wilson Furtado Roberto, especialista em direito autoral, afirma que “a pessoa que se torna pública, de certa forma, está cedendo um pouco de seus direitos de personalidade, ou seja, está sujeita a receber críticas”. “A presidente Dilma é alvo de críticas o tempo todo, porque é uma pessoas pública”, avalia. "Se o fato privado for verdade, ele é relativizado pela liberdade de expressão.”
O advogado Hermano Villemor Amaral Neto diz que “a briga é justamente não ter nada na lei”. “Se houvesse uma proibição explícita, não haveria a necessidade de o Supremo Tribunal Federal decidir sobre o tema”, defende. “Não há artigo específico que proíbe a circulação. Na minha opinião, o argumento por trás disso é o não recebimento de um beneficio econômico por aquele cujo nome vai ser usado.”
"A partir do momento que temos uma norma que não é clara o suficiente, nós temos interpretações para todos os gostos. Acabou criando mais confusão do que tudo", complementa Trevisioli. "
Projeto
As atuais regras também poderão ser alteradas se for aprovado o projeto de lei 393/11, de autoria do deputado Newton Lima (PT-SP). A proposta prevê a execução de filmes e publicação de livros biográficos sem a necessidade de autorização prévia do biografado ou de sua família.
Para Trevisioli, o projeto por si só não resolveria a questão prática, que hoje é alvo de "julgados aos baldes" no Judiciário. "Hoje temos um entendimento do STJ [Superior Tribunal de Justiça] de que, ao retratar um fato cultural, não preciso de autorização daquela personalidade, pois ela está abrindo essa brecha. A alteração da lei não elide totalmente o problema. Até onde aquela publicação fere minha honra e intimidade ou não?"
Os especialistas defendem também que deve ser definido se o biografado possui direitos autorais sobre a biografia e, por isso, seria beneficiado com parte dos lucros com ela obtidos.
O projeto foi aprovado em duas comissões na Câmara. Em abril, o deputado Marcos Rogério (PDT-RO) e outros 71 parlamentares entraram com recurso pedindo votação em plenário antes de ir ao Senado. Desde então, o PL está parado.