Definir um filme como melodramático soa, por vezes, quase como acusação. De que a obra merece todos os adjetivos depreciativos: existe para consumo fácil, é popularesca, uma fraude e um clichê sentimentalista, com música onipresente e atuações afetadas. Por trás do rótulo, contudo, pode haver valor artístico – e é isso que pretende mostrar a retrospectiva “Douglas Sirk: O Príncipe do Melodrama”, que abre em São Paulo nesta quarta-feira (16), no Centro Cultural Banco do Brasil, onde segue até 10 de junho. Paralelamente, a seleção passa por Brasília (22 de maio a 16 de junho) e Rio (12 de junho a 8 de julho).

A programação traz, ao todo, 29 longas de Douglas Sirk (1897-1987), o alemão que aportou Hollywood no início dos anos 1940, onde permaneceria até 1959. Antes, fizera teatro e cinema – rentáveis – em seu país natal. Marido de uma atriz judia, vinha fugido de Hitler. “Eu só estava mais ou menos a salvo porque meus filmes [alemães] davam muito dinheiro”, conta ele no documentário francês “Alguns dias com Douglas Sirk”.

“A ideia [da retrospectiva] foi gerada a partir de uma ausência de circulação da obra dele no Brasil”, explica ao G1 o crítico Cássio Starling Carlos, curador da mostra ao lado de Pedro Maciel Guimarães. “Para o cinema dele, sobretudo o dos anos 1950, é absolutamente imprescindível ter a experiência em tela.” A maior parte das cópias vem em película, os DVDs não chegam a dez – no caso destes, as sessões são gratuitas.

A valorização posterior da obra de Sirk é associada, em boa medida, à influência exercida em autores de boa reputação – alguns, inclusive, têm filmes programados na mostra. O alemão Rainer Werner Fassbinder (1945–1982) era admirador confesso. Mike Leigh e Todd Haynes estão entre os seguidores. E há o espanhol Pedro Almodóvar, cujos trabalhos recorrem visivelmente a Sirk: a mulher no centro das ações, as cores etc. “Os franceses chamam de melodrama flamejante”, aponta Starling. “Porque as cores são muito escandalosas, e ele [Sirk] explora isso. É um espetacular diretor de teatro que sabe como provocar o efeito para a Hollywood barata, para [causar] comoção rápida.”

O Brasil também tem estado em dívida com Douglas Sirk: muitos de nossos novelistas já citaram o cineasta como fonte de inspiração. Num texto publicado em seu site em abril do ano passado, Aguinaldo Silva fala precisamente sobre melodrama, cujas origens remontam à ópera. E escreve isto: “[Com o cinema] o melodrama passou a ser considerado o reino das histórias melosas e das interpretações exageradas. (...) Hoje uma releitura nos mostra que não foi bem assim. O melodrama no cinema, cujo mestre supremo foi o grande, imenso São Douglas Sirk (a volumosa biografia deste ‘santo’ serve de base ao meu monitor aqui em Lisboa)...”.

Lugar da mulher e ‘subversão’
Essencialmente popular, e comercial, o cinema de Douglas Sirk antecede a novela em alguns de seus aspectos essenciais. No longa “Tudo o que o céu permite” (1955) – um dos mais conhecidos do cineasta e que teve refilmagem de Haynes –, uma viúva (papel de Jane Wyman) apaixona-se por um jardineiro (Rock Hudson). Estão numa pequena cidade dos Estados Unidos, onde todos sabem da vida de todos, onde a obediência às convenções costuma se sobrepor a desejos como os sentidos pela protagonista. Mas ela parece gostar mesmo do sujeito e do desapego que ele proporciona, no que é recriminada pelo casal de filhos universitários e pela vizinhança. De um lado ou de outro, a viúva terá, enfim, de renunciar.

"O que os caras das novelas entenderam é que aquele modelo funcionava – e continua funcionando”, observa Starling. “Porque é um público iletrado, vamos dizer assim, e que absorve aquelas lições a partir desse gênero de valores muito prontos. As figuras no melodrama são todas claramente definidas: a má, o salvador... A gente copiou isso? Não, mas a gente filtrou a partir da nossa sociedade.”

Para o curador, no entanto, a “astúcia” de Sirk foi “usar o melodrama como uma espécie de gênero popular que esconde significados subversivos”. Como exemplo, cita o papel que as mulheres ocupavam na década de 1950. Nos filmes de Sirk, elas não seriam “simplesmente vítimas”: “Não é só o Sirk que faz melodrama, mas no Sirk está muito evidente a forma como se articula o melodrama para dizer alguma coisa a mais”.

Dizer alguma coisa a mais significa, novamente, conceder lugar distinto à figura feminina. “Aquele tipo de cinema não é do homem – é da mulher. Os homens funcionam um pouco como escada”, prossegue Starling. E uma das escadas habituais foi Rock Hudson (1925-1985), presente em nove das produções de Sirk em Hollywood. Sobre o astro, o diretor comenta, no citado documentário: “Eu o transformei num ator, de tanto ensaiar com ele”

Hudson se tornaria, adiante, famoso ainda por sua trajetória controvertida: o homossexual que, pressionado a manter a imagem de galã, engajou-se num casamento de fachada com uma mulher; anos depois, já declarada sua orientação, morreria por causa da Aids. “O papel dele nos filmes [de Sirk] é um pouco o de bonitão, de bibelô. É uma lógica comercial”, avalia o curador da mostra. “O Sirk inventa a figura masculina do Rock Hudson, esse homem perfeito dos anos 1950. Uma imagem muito cativante, e o Sirk é o cara que faz a operação.”

Resgate
Esses ingredientes essenciais do melodrama bastavam para o público – mas excediam para os críticos de então, que repudiavam os exageros e os artifícios do estilo. A chamada “reabilitação” de Douglas Sirk começa pouco antes de ele partir de Hollywood. Alguns dos primeiros a enxergar nele algo além da banalidade foram os críticos e cineastas da publicação francesa “Cahiers du Cinéma”. Elogiado por Jean-Luc Godard, François Trufautt e companhia, o diretor viu melhorar sua reputação. Também contribuíram alguns estudos universitários, já na década de 1970.

“Essa leitura é totalmente acadêmica, de inspiração feminista e freudiana. É ela que vai identificar no melodrama uma zona de confronto”, afirma Starling. “De todos os gêneros, o melodrama foi o mais achincalhado. O western foi reabilitado, o noir virou a grande inspiração de todo mundo – e o melodrama ficou para gente que gosta de novela.”

Não era totalmente involuntária, contudo, a opção de Douglas Sirk, embora suas decisões tenham sido calculadas conforme as circunstâncias. Starling lembra que, na Alemanha, Sirk a certa altura saiu da direção de um teatro mais elitista, em Hamburgo, para assumir o palco de uma cidade menor, “onde ele teve de montar textos populares – não podia mais montar só Shakespeare ou Molière, por exemplo”. “Ele falava que, a partir dali, descobriu como poderia usar o popular para mesclar com o erudito. Quer dizer, é a mesma estratégia que ele vai usar a vida inteira.”

'Douglas Sirk: O Príncipe do Melodrama' em São Paulo
Quando: 16 de maio a 10 de junho (quarta a domingo)
Onde: Centro Cultural Banco do Brasil (Rua Álvares Penteado 112, Centro)
Ingressos: R$ 4 (inteira) e R$ 2 (meia); sessões de DVD gratuitas
Programação: www.bb.com.br/cultura