Colega de cinegrafista: jamais queria ter feito essa reportagem

08/11/2011 10:25 - Brasil/Mundo
Por Redação

Os profissionais mais acostumados a empunhar microfones e câmeras para fazer as perguntas mais difíceis estavam do outro lado na tarde desta segunda-feira durante o enterro do cinegrafista Gelson Domingos, morto no domingo ao ser baleado durante a cobertura de uma operação policial na favela de Antares, zona oeste do Rio de Janeiro. O repórter e colega que acompanhava a vítima, Ernani Alves, disse que estava deitado quando começou o tiroteio: "eu não vi, eu recebi a informação por colegas. Naquele momento, tive a certeza de que estava fazendo a matéria que não queria ter feito. Eu jamais queria ter feito essa reportagem, eu jamais queria ter que estar passando por tudo isso aqui".

Dezenas de repórteres, cinegrafistas e pessoas ligadas à imprensa trocavam abraços e compartilhavam histórias de um colega que acumulou amizade e carinho nos 20 anos em que atuou para veículos como SBT, Record e Band. "Parecia que eu estava trabalhando com um profissional que estava começando no seu primeiro dia. Sempre brincalhão, sempre disposto, companheiro acima de tudo", disse Alves.

As circunstâncias que levaram ao assassinato do cinegrafista não são estranhas aos colegas acostumados a cobrir os recorrentes confrontos entre polícia e traficantes no Rio. A operação de domingo, desencadeada, segundo a Polícia Militar, para prender traficantes de uma facção que estariam reunidos na favela era para ser apenas mais uma no cotidiano do cinegrafista que estava sempre no front da notícia. Entre amigos, colegas e familiares de Gelson não restava dúvida: ele amava a profissão. A busca pela melhor imagem era constante, tanto que costumava brincar com seu parceiro de equipe: "Se eu cair em combate, você continua filmando", dizia, rindo.

Jair Domingos da Silva, um dos seis irmãos do cinegrafista, também comentou o carinho que ele tinha em levar o telespectador até o acontecimento. "A família tinha muito medo que alguma coisa pudesse acontecer com o Gelson. Falávamos isso para ele. Mas ele não tinha medo. Meu irmão era um guerreiro", afirmou.

Gelson também era preparado. Ele passou pelo curso do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) para jornalistas. "A Policia Militar dá cursos para repórteres, jornalistas, cinegrafistas, para esse trabalho de campo. Mas são poucos que o fazem. O Gelson é um desses poucos", afirmou o coronel Frederico Caldas, coordenador da assessoria de imprensa da PM. O coronel disse ainda que a vítima era muito querida e próxima aos policiais, por conviver com eles no dia-a-dia das coberturas. "O sentimento que a gente tem hoje é semelhante de quando a gente perde um dos nossos, tamanha era a proximidade que ele tinha com a nossa tropa, com nossos policiais", afirmou.

Empresas devem desestimular o jornalista a ficar na linha de frente, diz sindicato
Segundo o diretor do Sindicato dos Jornalistas do Rio, Rogério Marques, "o tráfico jamais pode calar a imprensa, mas existe um limite. As empresas devem desestimular os jornalistas a ficar na linha de frente". Ainda segundo ele, questões como se há pressão demasiada dentro das redações para a busca de notícias e se os repórteres não se arriscariam demais em coberturas precisam ser abordadas.

O âncora do Jornal da Band, Ricardo Boechat, negou que exista esse tipo de pressão. "Há uma cláusula pétrea nas coberturas da emissora que diz que a melhor notícia não vale o menor risco". No entanto, ele admitiu que a busca por notícias é intensa. Segundo Boechat, a vontade de obter a informação muitas vezes parte do próprio repórter. "A Band não tem um protocolo que diga, vai lá e se mate para conseguir a notícia, nenhuma emissora tem. Alguém tem essa orientação? Alguém, algum cinegrafista aqui, cumpriria essa determinação? Agora os profissionais que estão em campo e que têm a experiência e a vivência do Domingos, eles se posicionam e se conduzem", afirmou.

Já o presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Maurício Azêdo, apontou para a concorrência entre os próprios profissionais. "Eu acho que faltam medidas de proteção. Porque na maioria das vezes, o repórter que atua na linha de fogo tende a ignorar a dimensão do risco que está enfrentado. Se um companheiro avança no sentido que possa lhe arrebatar a primazia de uma informação, ele procura superá-lo e se expor ao risco, o que normalmente não deveria ocorrer", afirmou.

Outros casos
A morte de Gelson não foi um fato isolado. Tim Lopes foi morto em 2002 por traficantes do Complexo do Alemão. Uma equipe do jornal O Dia foi torturada por milicianos na zona oeste da cidade em 2008. Um fotógrafo foi ferido ao ser atingido por estilhaços de bala durante a ocupação do Complexo do Alemão, em novembro. Diversos jornalistas já tiveram ferimentos em coberturas no Rio.

Segundo Azêdo, a morte do cinegrafista deve servir para que seja feita uma análise coletiva e para que sejam adotadas medidas e práticas de segurança: "Que essa perda seja para analisar que às vezes é preciso recuar, mesmo que seja por um furo de reportagem. É preciso que haja mais cautela e mostrar que há risco nessa profissão".

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