O novo cenário político que se criou no Egito após a renúncia do ex-presidente Hosni Mubarak, há mais de dois meses, levou partidos políticos e movimentos sociais a debater que tipo de Estado deve surgir após a revolução no país. Considerado o maior e mais bem articulado grupo de oposição, a Irmandade Muçulmana começa a mostrar sinais de divergências internas sobre sua visão do futuro do Egito.
A junta militar que assumiu o poder no país dissolveu o Parlamento e suspendeu a Constituição, que garantia amplos poderes ao presidente, e formou uma comissão para reformular a Carta. Em março, os egípcios foram às urnas para um plebiscito sobre a reforma constitucional, que acabou aprovada pela maioria da população.
Mas muitos egípcios continuam receosos de que a revolução, que foi sustentada principalmente pelos jovens, estaria ameaçada por grupos mais conservadores que tentariam impor um Estado islâmico no país caso vençam as eleições parlamentares marcadas para este ano.
Embora considerada moderada se comparado a outros grupos islamistas, a Irmandade é ainda temida por seculares no país, que esperam um Estado que não seja baseado na sharia, a lei islâmica.
"A Irmandade anda deixando muitos egípcios mais seculares em um Estado de nervosismo. Muitos temem que uma maioria parlamentar composta por membros da Irmandade construa as bases para um Estado islâmico", disse o analista independente egípcio Hani Shukrallah ao Terra.
Segundo ele, há um conflito interno dentro da Irmandade Muçulmana em relação ao seu projeto e visão de um Egito. "Moderados e jovens tendem a um Estado mais secular mas com um caráter islâmico, como na Turquia. Já os mais conservadores do grupo preferem um Estado guiado pela lei islâmica mas que respeite as minorias", explicou Shukrallah.
Recentemente, dezenas de jovens militantes da Irmandade realizaram um congresso nacional e pediram reformas dentro da Irmandade. "São jovens islâmicos contagiados pelo espírito pluralista da revolução. Eles conviveram com egípcios liberais, nacionalistas em seus discursos, que pregavam uma sociedade secular, religiosa, esquerdista e islamista em coexistência", completou o analista.
Tabus internos
Inspirados pelos princípios da revolução, os jovens da Irmandade, com o apoio de membros reformistas, exigiram dos líderes mais velhos da organização que iniciassem reformas para tornar o grupo mais democrático e transparente.
Após a conferência, a juventude da Irmandade reafirmou sua lealdade ao movimento 25 de Janeiro, data do início dos protestos que derrubaram Mubarak, mas seus pedidos de reformas foram ignorados pela liderança da Irmandade que, segundo jornais do país, mostrou sinais de desconforto com a atitude de seus membros, revelando profunda sensibilidade em relação a críticas internas.
"A liderança do grupo não apenas desaprovou a conferência como pressionou sua juventude a interromper conferências públicas que mostrassem os bastidores internos da organização", disse Basem Fathy, ativista político e diretor da Academia de Democracia Egípcia no Cairo.
A intervenção dos líderes da Irmandade nos eventos promovidos pela juventude e reformistas do grupo provocou várias especulações da imprensa egípcia sobre os assuntos sensíveis que os jovens iriam tornar público. "A mídia do Egito se pergunta o que afinal estes jovens iam dizer que deixou os líderes da Irmandade tão furiosos e apreensivos", explicou Fathy.
A Irmandade Muçulmana é também o mais antigo movimento político do Egito, fundado em 1928, e que ainda usa uma ideologia, estrutura e estratégias tradicionais. Segundo Fathy, desde sua fundação, a Irmandade "jamais passou por grandes reformas e impõe diversos tabus internos".
"Suas regras internas ainda são bastante rígidas. Membros não podem criticar a liderança do grupo ou exigir mudanças estruturais sob pena de punições".
Eleições
Após a queda de Mubarak, um novo cenário político iniciou no país, com novos movimentos políticos sendo formados e velhos partidos, como o Partido Nacional Democrático, do ex-presidente Mubarak, sendo desmantelados.
"Nesse contexto, a Irmandade saiu na frente, pois já era o movimento político mais organizado, e agora já está em clima eleitoral para as eleições parlamentares marcadas para setembro desde ano", revelou Hani Shukrallah.
Segundo ele, a Irmandade foi a que mais fez campanha pelo voto do "sim", que aprovou as reformas da Constituição no referendo em março. "O grupo chegou a fazer campanha dizendo às classes mais baixas que o voto de aprovação era um voto ao Islã".
Shukrallah explicou que com a aprovação da reforma da Carta, as eleições parlamentares continuaram no cronograma para serem realizadas daqui a cinco meses, beneficiando a Irmandade, mais organizada e pronta para o pleito.
"Seculares e liberais queriam uma nova Constituição e eleições com nova data e tempo hábil para os partidos se organizarem. A Irmandade foi a que mais lucrou após os resultados do referendo".
No Egito, há a expectativa de que a Irmandade se torne o maior bloco político no Parlamento, deixando incertezas sobre a reação dos militares a este contexto. Especula-se que as Forças Armadas, que controlam o país até as eleições, não cederia todos seus poderes após um Parlamento dominado por membros do grupo islâmico.
Mohamed Shams, especialista em Irmandade Muçulmana na Universidade Ain Shams do Cairo, disse ao Terra que ainda há um debate interno dentro do Conselho da Shura, órgão da Irmandade formado por 100 membros, se o movimento deve se transformar em partido político.
"Há visões distintas. Alguns acreditam que a Irmandade é muito maior que um partido e não deveria entrar em competições políticas. Eu acho que a Irmandade deveria contribuir em reformas em nível nacional apenas", disse Shams.
"Um partido político da Irmandade não seria visto como independente da ideologia do grupo e, protanto, hábil a operar numa arena pluralista. Ao invés disso, seus membros deveriam ser autorizados a se filiar a outros partidos", completou.
Cristãos e seculares
A perspectiva de um governo dominado pela Irmandade Muçulmana vem preocupando muitos seculares e cristãos coptas, grupo religioso que formam cerca de 10% da população de 80 milhões do país.
Nas redes sociais Twitter e Facebook, algumas das armas usadas pelos egípcios para organizar os protestos e a revolução que culminaram na renúncia de Mubarak, jovens seculares de diferentes religiões vêm mostrando sua preocupação sobre um governo dominado pela Irmandade Muçulmana.
Muitos temem que o Egito, cuja sociedade se tornou mais conservadora nos últimos 30 anos, passe por mais repressões de um Estado islâmico (se de fato isso acontecer). Grupos feministas, por exemplo, temem que a situação das mulheres sob leis islâmicoas mais conservadoras.
Embora a Irmandade Muçulmana vinha pregando mais tolerância em relação às mulheres e minorias nos últimos anos, seculares continuam desconfiados das verdadeiras intenções do grupo, ao ponto de vários cristãos coptas declararem em emissoras de televisão que deixariam o país caso um Estado islâmico seja declarado no Egito.
"Outros acreditam que a juventude da Irmandade Muçulmana está mais sintonizada com o desejo do movimento da revolução por uma Estado secular", disse Shukrallah.
Atentos aos medos da sociedade, membros da Irmandade declararam à mídia do país que o grupo não pretende tomar posições radicais. O secretário-geral da Irmandade, Mahmoud Hussein, declarou em entrevista a uma emissora de TV que um partido político do grupo, chamado de Partido Justiça e Liberdade, "já teria mulheres e coptas entre seus membros fundadores".
Mebro do Conselho da Shura da Irmandade, Helmy al-Gazzar, disse a jornais do país que o programa do partido está sendo revisado por todas as camadas da sociedade. "Nós vamos considerar todos os pontos de vista e chegaremos a uma versão final do nosso programa em alguns dias".
Os 100 membros da Shura devem divulgar sua decisão final de criação do partido político da Irmandade nos próximos dias. O prota-voz do grupo, Essam al-Arian, tratou de acalmar os cristãos sobre as intenções da Irmandade e disse que o grupo está se reunindo seguidamente com líderes coptas.
"Essa iniciativa é do Guia Supremo da Irmandade, Mohamed Badie, para assegurar aos coptas de que o grupo apoia os princípio de cidadania", disse al-Arian. "Estamos ansiosos para fazer um esforço conjunto nas atividades políticas"