Ainda faltam três anos, mas os preparativos para a Copa do Mundo de 2014 já estão mobilizando todo o país. Mesmo com toda expectativa, para a arquiteta e urbanista Raquel Rolnik, professora da FAU-USP (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo) e relatora da ONU (Organização das Nações Unidas), a relação entre obras, gastos e o verdadeiro impacto das mudanças propostas na urbanização das cidades ainda é desconhecido da população. Segundo Raquel, o real valor que será gasto para a montagem do evento também é uma incógnita.

Acompanhe abaixo a entrevista concedida, por telefone, ao R7.

R7 - Qual é o principal impacto que a Copa deve provocar em São Paulo?
Raquel Rolnik - Há impactos diretos e indiretos. O problema é que está tudo indefinido. Um dos principais legados, do ponto de vista da infraestrutura urbana, seria a mobilidade, que é o tema mais caótico do conjunto de pautas em São Paulo hoje. A ligação por trem pelo aeroporto de Guarulhos [anunciada pelo governo de São Paulo] , na minha opinião, deveria ser uma ligação com a cidade, não só com o aeroporto. É uma cidade com um milhão de habitantes e que não tem transporte coletivo de massa.

R7- Os investimentos em transporte são os mais importantes?
Raquel - A questão é: qual é o projeto e a quem ele vai beneficiar. Do meu ponto de vista, os projetos de mobilidade deveriam beneficiar a população. Tudo isso deve ser feito de forma a melhorar a situação das pessoas. O monotrilho, por exemplo, inicialmente proposto pelo governo do Estado – que já anunciou que desistiu do projeto – seria uma ligação direta só com o aeroporto de Guarulhos e não com a cidade de Guarulhos. É um projeto caro. Uma passagem de R$ 35 é cara.

R7 - De onde virão os recursos para essas obras?
Raquel - Ninguém sabe onde está o orçamento da Copa. De onde vai sair o dinheiro? Tem setores que serão prejudicados pela transferência de investimentos, como saúde e educação? Tudo isso não dá para dizer.

R7- Por que não dá para dizer?
Raquel - Não tem um orçamento. A divulgação dos gastos pode ser suspensa por determinação, inclusive, da própria Fifa [Federação Internacional de Futebol]. Ela envolve todas essa discussão de obras, de quem vai ser atingido, quem vai se beneficiar. No meu entender, justamente por isso é necessário haver transparência.

R7 - No final de agosto, foi aprovado no Senado um projeto de lei que autorizava empréstimos de até R$ 10 bilhões pela União à Copa de 2014 e às Olimpíadas de 2016...
Raquel - Foi um primeiro termo de compromisso e ele, basicamente, refere-se aos projetos de mobilidade [transporte]. Isso tem um termo de compromisso aprovado.

R7- Em São Paulo, estão até construindo um estádio, o do Corinthians...
Raquel - [Interrompe] Que estádio? Sabe-se lá! Cadê o estádio, cadê o orçamento? É tudo uma caixa preta. Coitados dos jornalistas que tentam descobrir se vai ter estádio ou não.

R7- No entorno da área onde supostamente será construído o estádio do Corinthians há uma favela. Há um problema de moradia no local...
Raquel - O que vimos, em obras que ocorrem nas cidades que sediam os jogos, foram despejos forçados. O direito à moradia, do qual o Brasil é signatário, não está sendo respeitado. As famílias de baixa renda estão sendo despejadas, às vezes, sem nenhuma ordem judicial, sem possibilidade de escolha de local, sem opção de reassentamento.

R7- Está sendo feito de forma arbitrária, então?
Raquel - É o que o pessoal chama de “saco de despejo”. Dão R$ 2.000, R$ 3.000 para a pessoa sobreviver. Ela vai comprar o quê com esse dinheiro? Morar onde? Em outros casos, como no rodoanel, só é feita a restituição por benfeitoria (só pela casa). E não por direito real de uso. Dão R$ 15 mil, por exemplo. Em que lugar você compra uma casa por esse valor? Em nenhum lugar! A pessoa recebe o dinheiro e acaba virando sem-teto. Ou vai viver num lugar muito pior. Isto está acontecendo em Belo Horizonte, Fortaleza, Porto Alegre... É muita ameaça de despejo.

R7- Todas essas ameaças estão acontecendo sem ordem judicial?
Raquel - Temos que olhar caso a caso. Mas em Fortaleza, por exemplo, a prefeitura está pintando as casas, colocando um número e as pessoas nem sabem o que está acontecendo.

R7- Não existe nenhum centro de fiscalização?
Raquel - Neste momento, não. Nem pela cidade, nem pelo governo federal. A questão é que, pela Copa, vale tudo, qualquer coisa.

R7- As remoções são o fator negativo desses megaeventos?
Raquel - Há vários fatores além das remoções, mas que surgem com o acontecimento dos jogos. É morador de rua que é expulso da região, vendedor ambulante... É um processo de higienização, mas isso acontece mais perto dos jogos. São atitudes muito excludentes.

R7- Existem experiências semelhantes em outros países?
Raquel - Sim. Há também o aumento de prostituição e do tráfico de seres humanos, principalmente do adolescente. Além disso, há o problema de leis trabalhistas, incluindo mortes de trabalhadores durante as obras. Em Atenas (Grécia) morreram 14 trabalhadores durante as obras dos Jogos Olímpicos.

Outro lado

Em resposta à declaração de Raquel Rolnik, o governo de São Paulo - por meio da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) - informou que o projeto do expresso aeroporto para ligar o centro de São Paulo ao aeroporto de Guarulhos vai ser realizado. Em nota, o órgão diz que “o edital da licitação para implantação do expresso aeroporto já está pronto e depende exclusivamente da definição, por parte do governo federal, quanto à implantação do terminal de passageiros 3, do aeroporto de Guarulhos”. Segundo a CPTM, o expresso aeroporto, chamado de linha 14-Ônix, vai ligar o centro da capital paulista ao aeroporto em 20 minutos, num trajeto de 28 km.

Sobre as moradias pintadas em Fortaleza (CE), o governo cearense diz que a medida faz parte de uma pesquisa social, feita com as famílias donas dos imóveis, nos locais em que podem ocorrer desapropriações. O levantamento, feito por uma empresa terceirizada, faz parte de um estudo de mobilidade urbana, de ruas de acesso ao estádio de futebol Governador Plácido Castelo, o Castelão, no bairro Passaré.

O COL (Comitê Organizador Local), subordinado à Fifa (federação internacional de futebol), foi procurado pela reportagem do R7, mas não respondeu até a publicação desta notícia.