Todo Oscar tem um tema, ou dois. Ano passado, com a recessão pairando sobre a festa como a dilapidada nave espacial de "Distrito 9", a vontade de aclamar um filme repleto de triunfo sobre a miséria como "Quem Quer Ser um Milionário?" era irresistível. Na execução do evento a esperança também dominava – esperança de reconquistar platéias, diminuir o tédio inerente à grande orgia auto-celebratória que qualquer entrega de prêmios, no fundo, é. Fazia-se graça com a austeridade forçada logo no número de abertura, e Hugh Jackman cantava e dançava como nos velhos tempos em que Hollywood exportava esse tipo de sonho mundo afora.
Este ano a recessão virou depressão e a indústria – de quem a Academia representa a nata e o pensamento coletivo – está ansiosa quanto às suas próprias chances de sobrevivência. As principais fontes internacionais de financiamento secaram. Os espectadores preferem economizar ficando em casa com uma pizza e filmes on demand.
De muitos modos esta tensão se revela nas escolhas e nos preparativos do Oscar 2010. O primeiro grande sinal está na reviravolta da indicações, abrindo a categoria “melhor filme”, a mais nobre de todas, para 10 títulos. “Há tempos eu acreditava que a Academia devia si mesma ser mais democrática”, diz o co-produtor do Oscar, Bill Mechanic, num intervalo dos ensaios para o evento no teatro Kodak. “Será que filmes como "Distrito 9" ou "Preciosa", dois filmes maravilhosos, teriam lugar entre os indicados senão tivéssemos 10 lugares?” Penso cá com meus botões e zíperes que cinco indicações não parecem ter sido obstáculo, no passado, para filmes igualmente independentes como "Meu Pé Esquerdo", "Fargo", "Segredos e Mentiras", "Shine", "Carruagens de Fogo", "Beleza Americana", "Onde os Fracos Não Têm Vez", "O Retorno do Rei" ou, aliás, "Quem Quer Ser Um Milionário?"…
O comentário do atual presidente da Academia, Tom Sherak, parece mais coerente: “Sinceramente, acho que pecamos pelo esnobismo, muitas vezes. Sentia falta da presença do gosto popular.” Ou seja, o estranho no ninho, possibilitado pelas 10 indicações, é "Um Sonho Possível" e não "Distrito 9" ou "Preciosa". Não é com os nichos independentes que a Academia está preocupada, é com o vasto gosto médio que, consistentemente, neste ano recessivo, tem posto no alto das bilheterias as comédias, filmes de ação ou melodramas como "Sonho".
Vendo Sherak sorrir e abanar a cabeça, contente, enquanto Mechanic e seu parceiro de produção, Adam Shankman, descrevem como o espetáculo deste ano tem segmentos “inspirados na MTV”, “desenhados especificamente para o público jovem” e “com alto conteúdo emocional” fica bem claro que a meta do Oscar 2010 é consolidar os ganhos de audiência de 2009, popularizar a festa e servir como incentivo para a indústria, num momento de crise.
O que explica a presença da verdadeira raridade entre os 10 indicados, considerando que o Oscar tradicionalmente ignora ficção científica/fantasia e não se deixa encantar por efeitos visuais (fora de seu devida categoria): "Avatar". Se "Avatar" fosse apenas um bom filme de ficção científica/fantasia – como, por exemplo, "Star Trek", que apesar de ter sido um sucesso de crítica e público, não está entre os 10 mais - ele também poderia estar de fora das categorias mais nobres. Mas, ao propor e realizar plenamente uma nova forma de produzir espetáculo, unindo sem costura o real e o virtual, a captação e o efeito, e adicionando a isso uma interpretação radical do potencial 3D, James Cameron acenou com aquilo que a indústria mais esperava : uma saída possível, um salto quântico, um novo padrão de realização.
Considere-se, por exemplo, o predecessor imediato de "Avatar" como raro filme de fantasia e efeitos oscarizado, "O Retorno do Rei": a bola que Peter Jackson levantava ali, o passo além na integração real/virtual, é exatamente o filme que inspirou Cameron a enfim dar partida no que era um projeto arquivado desde 1995 por inviabilidade técnica. A Academia é de Ciências e Artes, e adora ver as duas juntas, ainda mais quando as duas, juntas, traduzem-se em belas bilheterias.
A "Avatar" opõe-se, este ano, o filme que representa, em termos de abordagem, quase seu oposto: "Guerra ao Terror". À opulência de recursos e acabamento de "Avatar" "Guerra" propõe o retorno a um cinema imediato, cru, mais próximo do documental que do efeito especial. Coerente com sua visão, "Guerra" foi realizado em condições heróicas, com recursos minguados levantados com esforço – para a indústria, sinal de que escassez não mata criatividade, que aqui também há uma saída.
A questão que se oferece, então, é qual dessas visões e propostas será laureada na noite em que a Academia pretende lembrar ao espectador médio do mundo todo que, parafraseando o velho slogan brasileiro, cinema ainda é a maior diversão. Talvez, quem sabe, nenhuma das duas, mas a revisão da Segunda Guerra Mundial - um tema queridíssimo para os Acadêmicos e que em geral reverte-se em estatueta - proposta por Quentin Tarantino em "Bastardos Inglórios". No quadro atual, Tarantino representa, ironicamente, o cinema mais tradicional, a paixão pela película, pelo acabamento, pelo diálogo, pelo personagem como ícone. Seria um terceiro caminho para um Oscar que, mais do que nunca, está numa encruzilhada.









